quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Mercador


Jamil empurrou a porta emperrada da loja, que reagiu metálica, rasgando o chão de azulejo. O dia estava quente e não demoraria a surgir uma velha sensação que se anunciava.

Percorreu os tapetes empilhados com as pálpebras semicerradas, tique seu e estranho traço genealógico. A luz agora adentrava a pequena esquina da Ladeira Constituição. Avivava as cores fortes e destacadas que abrilhantavam os arabescos dos fios sintéticos dos tapetes à venda. Folhagens em azul anil apareciam na tapeçaria logo abaixo do papel que anunciava a quantia modesta a ser oferecida pelo produto. Podia-se fazer em três, até quatro vezes, pensava ele.

Devia negociar, como fazia seu tio quando ainda trabalhava na loja. Mas sem sua presença, algo que lhe escapava fazia-se ausente. Não sabia o que, mas sua falta retirava algo dali, e em seu íntimo, quando algum cliente antigo adentrava a loja, desejoso do sorriso conhecido de seu tio, Jamil sentia-se menor. Via-se contrair por dentro, escondendo o olhar nos cantos abarrotados de mercadoria.

O calor aumentava e a balbúrdia que tomava conta da 25 de Março lhe lembrava onde estava.

As funcionárias haviam chegado enquanto ele esquadrinhava os dez metros quadrados repletos de pilhas de tapetes e almofadas sintéticas que se alternavam, em displicente disposição. Ergueu um tapete para fora da porta, e enquanto batia a poeira que se levantava dos fios, lembrava do deserto.

Havia visto um filme na noite anterior, e a lembrança de cenas do deserto, deslocadas, tomavam sem aviso o rumo de seus pensamentos. Era um filme de guerrilha, mas o deserto lhe trazia paz, e calor.

O calor que tomava conta da rua, vinha do sol, do asfalto e das pessoas em movimento. O calor dos desertos era diferente. Faz os homens se sentirem pequenos, parte de um universo maior, de areia e sombra, no qual a pele acolhia a brisa carinhosamente, como um presente. O deserto tem um jeito estranho de abraçar...

A poeira do tapete flutuava no ar. Aqui as pessoas fugiam do calor, e se pudessem, apagariam o sol do céu... O que estava dizendo? Nunca havia estado no deserto...

Voltou a si. E pensou consigo mesmo, não havia gostado daquele filme afinal. Meio dia já se esgotava, podia ter vendido mais, se apenas tentasse negociar... mas não, não era seu tio. E gostava dele, mas não era sua a inata habilidade em vender três ou até quatro tapetes de uma vez só. Pensou nas palmeiras avistadas ao longe por cima de um traço no horizonte arenoso, era como se seu peito fosse soltar-se diante de tanta beleza e esperança.  

Entram alguns clientes. Jamil atende, prestativo e calmo. O calor agora parecia chegar ao seu ponto máximo enquanto os ventiladores de teto zuniam monotonamente, lembrando o canto ecoante de tribos que nunca vira. Tribos enterradas na areia fria como formigas geometricamente pregadas em volta do fogo, em terras que nunca visitara.

Pisa no degrau da porta uma mulher de cabelos castanhos, aparenta cerca de quarenta anos. Deve estar procurando um tapete para sua casa, pensa Jamil. Ela abre um sorriso franco e pergunta o preço dos tapetes encostados à beira da calçada. Traz em volta do pescoço um lenço, graciosamente disposto sobre o colo e que lhe conferia algo de diferente. A mulher examina os tapetes.

É preciso sentir a amplidão do deserto para aprender a confiar nos passos que levam ao futuro. É preciso saber o que há além do que não se pode distinguir ao longe, na linha trêmula do horizonte que aferventa o ar... Jamil dissimula os pensamentos longínquos e fora de hora e lugar.

Observa os movimentos da cliente, sua maneira de portar as mãos. O movimento destas mãos, não de outras. A lentidão do vento morno, resto de tempestade de areia, silvando entre dedos, a pele das palmas finamente cravadas pelas linhas do destino.

Então ela lhe diz com ternura no rosto e uma leve risada enquanto percorre um tapete com minuciosa atenção. “Este aqui é uma beleza, mas não deve ter vindo do deserto para chegar até aqui, não é mesmo?”

Não foi mais possível conter-lhe a sensação da brisa que subia naquele momento e refrescava, revolvendo com delicadeza a duna-cidade ao entardecer. A brisa não era quente, nem fria, elevava-se volátil e perfumada pelo cheiro de uma caravana distante, emoldurada pelo tecido uniforme feito de cristais de areia fina, que se estendiam até o infinito...

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