quarta-feira, 22 de junho de 2011

Açúcar

Deolinda tinha poucos anos na época ainda. A soleira da porta e o terraço eram quase que uma coisa só, caminho de passagem dos braços cheios de cana fresca, brecha para um espio do moço ao lado, filho de gente douta e encaminhada. Argelino era assim, magro, astuto, sorridente, sabedor dos negócios da família, cheio de dentes. Ele não mexia em cana, seus negócios eram outros, coisas de papelada. Não sabia ao certo o que era, mas ocupava-lhe certo tempo no casarão empoeirado. E papeladas são coisas de importância. E aquela poeira toda no casarão, decerto não lhe causava asma? As tosses dos ricos eram outras, tinham causas de cansaço, diferente das da gente que se confunde com os pés de cana e apalpa a terra com os pés o dia todo.

Mas Deolinda tinha seu vestido branco para ele reparar ao domingos, e ele lá sempre ao negócios, com o açúcar desfazendo-se no café quente e encorpado, enquanto ela se desfazia em gotas junto à garapa na fervura. Os vapores dali eram os mais doces de toda a propriedade, e o moço Argelino, seguindo o cheiro agudo que dali se expandia, procurou ao redor da moça, e achou de onde vinha seu doce.

E Deolinda não estava de vestido branco naquele dia, mas a brancura dos dentes se mostrava em um sorriso sincero, franco. Ela também tinha dentes, mas não entendia nada de papeladas. O próprio nome tinha riscado no chão apenas uma vez com a ajuda da tia. Sabia como se parecia o desenho de seu nome, e a forma bonita das letras lhe agradava. Como o açúcar da cana tenra, o desenho do nome era bom, sem explicação.

Argelino voltou mudado daquele dia. E então passou a reparar mais na moça. Não tinha dote, nem piano, nem alta costura. Não tinha conversa, mas não era muda como as paredes de retratos de seu casarão. Era Deolinda apenas, uma fração de mulher com olhos acordados e lustrosos. E ali, de dentro dos olhos, via vida a saltar fora. Como o pé de manga entre as canas, ela era diferente.

Das chuvas

Sempre choveu por aqui. As vezes, a água que caia assumia contornos artísticos, granulada como um filme, espessa como as pinceladas de Monet que encharcavam o nenúfar polido pela tarde. As vezes, ousava com meu guarda chuva vermelho, passear pelas poças, evitando a lama com os sapatos de boutique. Mas aquilo foi nos anos vinte, quando em Paris se conhecia mais a noite do que o dia. Mas eu sempre preferi o dia...e não faz mal assim.

Mas você disse que gostava de chuva, e eu também, e nisso o tempo passou. Eu continuo gostando dela, mas de um jeito diferente...o sentimento que ela me traz, de aconchego protegido de seus respingos, pelo lado de dentro da janela, é outro. Não se parece mais com a melancolia do gramofone, nem com os traços esparços de um tempo que já se foi...é agora algo diferente, como o grito infantil, alumbramento de Bandeira, ela vem da entranha das matas, dos rios, das terras virgens encrustradas de sibilos que quase ninguém ouve. Ela agora, a mim transparece o que há por trás de cada gota costurada à mão, fio a fio, como o crochet dos tempos outros, quando subíamos as ladeiras empedradas de Évora, Cascais, Ribeira e Aviz, à volta do colégio. Na chuva os pequenos não iam às aulas e ficavam a fazer troça de seus mestres. O mundo era menor naquela época, os livros mais extensos e empoeirados. Conhecia-se o vizinho ao lado, e a chuva sempre nos dizia “Pois fiquemos mais um pouco à espreita do dia”.

E saudade já não era tanto quanto se pudesse caber numa vida.