segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Amor de desencontro

Foi só um arranhão. Um arranhãozinho, indo do capô à lanterna do carro, coisa pequena. Então tudo bem, ela pagava e ficava tudo certo. Ele perguntou seu nome, mas ela não respondeu.

-Só um minuto, vou anotar a placa do seu carro primeiro.

Ih, aposto que essa deve bater o carro todo mês – ele pensou.

-Porque você tinha que me fechar daquele jeito? Eu achei que você ia parar.

-Porque sempre a gente tem que parar? Os outros nunca param né?

-Eu achei que você ia parar moça.

-É eu também.

-Você tem seguro?

-Não.

-Eu também não. E agora como é que faz? Quem vai pagar?

-Seria bom se você pudesse fazer a gentileza de assumir a culpa - disse ela.

-Mas não fui eu quem bati em você, foi você quem veio correndo, lá de trás, ouvindo rádio, toda desligada, eu vi.

-Voce viu?

-Ví.

-Como se eu estava lá atrás?

-Eu ví ué, olhei pelo retrovisor e vi você, correndo que nem uma louca.

-Então quer dizer que você me viu e nem deu o trabalho de desacelerar... Pelo contrário, correu mais ainda.

-É por que queria chegar primeiro. Estava atrasado. Aliás, estava não, estou. Agora já perdi a hora.

-Eu também.

-Acho melhor agente sair daqui do meio da rua, lá atrás já está virando um caos.

-E você não vai pagar?

-Você tem telefone?

-Pra que?

-Não, sei. Não é isso que as pessoas fazem quando batem o carro, trocam telefones?

-Vamos estacionar ali do lado

-Ok.

...

-Você nunca bateu o carro? - ela perguntou.

-Não, estava novinho, comprei faz pouco tempo.

-Puxa...

-E você, bate o carro, assim... Com frequência?

-Por que? Parece?

-Só estou perguntando...

-Já bati sim...Mas uma vez só, e pior, foi nessa mesma rua...

-Sério?

-Sério.

-Que coincidência...

-Nem me fale...

-Então quer dizer que você bate sempre, quer dizer, vem sempre aqui?

-É o caminho do trabalho.

-É o meu também.

-E todo mundo sempre corre aqui nessa ruazinha, impressionante. Parece que todo mundo passa por aqui e lembra que tá atrasado.

-É isso também acontece comigo.

- Olha... Me desculpa, eu não queria ter feito isso.

-Na verdade, eu que não devia ter corrido tanto, vi você vindo lá de trás, mas queria chegar primeiro...

-Mas era sua vez de passar.

-Mas você estava com mais pressa do que eu...

-Na verdade, eu nem estava com tanta pressa assim, mas todo mundo correndo, dá até mais pressa, não sei...

-É que essas coisas estão...tipo no ar sabe? Um pega e passa pro outro..sem saber

-Você também acredita nessas coisas?

-Acredito...

-Na verdade, eu quase nunca corro, eu nem sei porque estava correndo...

-Vai ver você tinha que bater o carro mesmo e eu também.

-Será? Não sei... As pessoas não acreditam nisso por ai...

- Ah, não sei, às vezes eu acredito...

- E porque você não fez seguro?

-Eu achei que nunca ia bater o carro. Não, não foi isso, eu achei que nunca ia bater o carro a ponto de precisar do seguro. E você, por que não fez seguro?

-Não sei, descuido. Acho melhor fazer daqui pra frente, já é a segunda vez então...

-Eu tenho um primo que é corretor de seguros sabe... Gente boa ele.

-E porque você não fez seu seguro com ele?

-Qual é seu nome?

-Márcia.

-Olha Márcia, eu não gosto de seguradoras, seguros, enfim, essas coisas só me deixam mais aflito ainda.

-Por quê?

-Porque você está literalmente investindo em uma coisa que quer evitar sabe?

-Mas não é bom prevenir?

-É bom sim, você tem razão.

-Acho que você tem que superar isso sabe?

-Você é psicóloga?

-Sou.

-Ah entendi.

-Entendeu o que? É sério, você tem que fazer um seguro mesmo, olha onde você vive. É loucura não ter seguro hoje em dia.

-É mas você também podia ter pensado nisso do seguro....ai quem sabe, evitaríamos alguns problemas...

-É mas eu não tenho.

-Você quer o telefone do meu primo?

-Quem, o do seguro? Ah pode passar... Nossa estou super atrasada, já perdi meu compromisso. Qual é o seu nome mesmo?

-Fábio. E o seu é Márcia.

-Isso.

-Você ia pra onde mesmo?

-Vila Mariana. Eu trabalho lá.

-Perto de onde?

-Da cinemateca, conhece?

-Sei, sei sim. Eu fui lá uma vez já... Ver um filme... Não esqueço esse dia...

-Que filme?

-Não lembro o nome, mas era sobre um casal...

-Um casal...?

-É um casal desses bem comuns sabe, que fica discutindo a relação o filme inteiro... Muito, muito chato mesmo.

-Mas porque você foi ver então, se era tão chato?

-Eu não sei, achei que minha namorada... Ex-namorada! ia gostar de ver o filme, ai fomos lá ver... Nossa era muito chato mesmo, as músicas davam até sono... Eram uns boleros sofridos... Que filme triste sabe... E o casal discutia e discutia e não saia do lugar. Parecia até que eles gostavam de ficar conversando e discutindo sem parar... Uma loucura...

-Você pelo menos prestou atenção na música.

-É que eu sou músico...

-Legal...

-Agente tem uma banda...

-Bacana

-Eu meu primo e uns amigos nossos...

-O primo do seguro?

-Não outro primo... Família grande, italiana...

-Meu pai também é descendente de italiano... Imigrante

-Você, eu e metade da cidade...

-Uma vez eu fui num museu... Museu do Imigrante, lá na Mooca, você conhece?

- Não, nunca ouvi falar.

-É bem legal lá mesmo... Você pode procurar os registros da sua família, sobrenome e tal... Ver quem veio de navio com quem, de onde vinha, pra onde ia...

-Meus bisavós se conheceram num navio... Essa história é engraçada, eles viajaram seis ou sete meses, e no último dia de viagem se conheceram, só no último dia... Mais um pouco eles tinham ficado sem se conhecer...

-Será?

-É, na verdade eu acho que não... É como eu disse, acho que tem coisas que tem que acontecer mesmo, vai entender... Se quiser depois te conto a história melhor, eu não lembro bem... Mas eles foram bem felizes juntos...pelo menos eles se davam bem...

-É um dia você me conta. Vou ficar feliz em saber a história dos seus bisavós...

-Sério?

-É sim... É que tem a ver com o tema da minha pós da psicologia...

-Sobre o que é a sua pós?

-Tem um nome complicado, mas é sobre a função da memória na formação da personalidade...

-Poxa bacana... Coisa séria hein..

-É... Eu queria fazer já faz muito tempo... Esses dias estava pesquisando sobre a nossa capacidade de lembrar das mesmas coisas do passado, de um jeito diferente, e mudar nossa percepção sobre elas no presente... Quase como acionar um botão... Que podemos apertar a qualquer momento...

-Tipo a lembrança dessa batida daqui para frente...?

-É tipo a lembrança dessa batida daqui pra frente...

-Parece então que agente apertou o botão ao mesmo tempo...

-É...Olha, eu nem sei por que impliquei tanto com esse arranhãozinho.

-Um arranhãozinho com um leve amassado no final...

-E um pedacinho do para-choque caído.

-Não é tão ruim assim.

-Não, não é.

-E agora eu vou olhar pro meu carro amassado, e vou lembrar de você.

-Eu acho que ainda vou lembrar da batida também...meu carro arranhou mais que o seu.

-É verdade, você foi mais prejudicada do que eu.

-Pois é, está desigual.

-Então eu vou ser obrigado a te pagar um café para compensar.

-Mas um café não vai compensar esse dano...

-Não tem problema, eu pago vários.

-De uma só vez?

-Não, posso ir parcelando os cafés se você quiser...

-Em quantas vezes?

-Umas quatro ou cinco quem sabe... Depende de quantos cafés você achar que vale essa batida...

-Acho que vale alguns cafés, talvez uma ida à oficina...

-Que bom... Agente compensa o dano.

-É agente compensa... Aos poucos

-É aos poucos.

-Você vai por ali?

-Eu vou para o outro lado.

-A essa hora não faz mais sentido ir por ali, vou voltar pra casa.
Me desculpe, atrapalhei seu dia.

-Que isso. Foi só um desvio de rota. Acontece.

-Mas que besteira, eu nunca devia ter batido em você, devia ter desacelerado.

-Eu também, e devia ter desviado.

-Sim e você também.

-Mas aí teria sido mais um desencontro.

-Sim, teria...

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