Jamil
empurrou a porta emperrada da loja, que reagiu metálica, rasgando o chão de
azulejo. O dia estava quente e não demoraria a surgir uma velha sensação que se
anunciava.
Percorreu os
tapetes empilhados com as pálpebras semicerradas, tique seu e estranho traço
genealógico. A luz agora adentrava a pequena esquina da Ladeira
Constituição. Avivava as cores fortes e destacadas que abrilhantavam os arabescos dos fios
sintéticos dos tapetes à venda. Folhagens em azul anil
apareciam na tapeçaria logo abaixo do papel que anunciava a quantia modesta a
ser oferecida pelo produto. Podia-se fazer em três, até quatro vezes, pensava ele.
Devia
negociar, como fazia seu tio quando ainda trabalhava na loja. Mas sem sua
presença, algo que lhe escapava fazia-se ausente. Não sabia o que,
mas sua falta retirava algo dali, e em seu íntimo, quando algum cliente antigo
adentrava a loja, desejoso do sorriso conhecido de seu tio, Jamil sentia-se menor.
Via-se contrair por dentro, escondendo o olhar nos cantos abarrotados de
mercadoria.
O calor
aumentava e a balbúrdia que tomava conta da 25 de Março lhe lembrava onde
estava.
As
funcionárias haviam chegado enquanto ele esquadrinhava os dez metros quadrados repletos
de pilhas de tapetes e almofadas sintéticas que se alternavam, em displicente
disposição. Ergueu um tapete para fora da porta, e enquanto batia a poeira que
se levantava dos fios, lembrava do deserto.
Havia visto
um filme na noite anterior, e a lembrança de cenas do deserto, deslocadas,
tomavam sem aviso o rumo de seus pensamentos. Era um filme de guerrilha, mas o
deserto lhe trazia paz, e calor.
O calor que
tomava conta da rua, vinha do sol, do asfalto e das pessoas em movimento. O calor
dos desertos era diferente. Faz os homens se sentirem pequenos, parte de um
universo maior, de areia e sombra, no qual a pele acolhia a brisa
carinhosamente, como um presente. O deserto tem um jeito estranho de abraçar...
A poeira do
tapete flutuava no ar. Aqui as pessoas fugiam do calor, e se pudessem,
apagariam o sol do céu... O que estava dizendo? Nunca havia estado no deserto...
Voltou a si.
E pensou consigo mesmo, não havia gostado daquele filme afinal. Meio dia já se
esgotava, podia ter vendido mais, se apenas tentasse negociar... mas não, não
era seu tio. E gostava dele, mas não era sua a inata habilidade em vender três
ou até quatro tapetes de uma vez só. Pensou nas palmeiras avistadas ao longe
por cima de um traço no horizonte arenoso, era como se seu peito fosse
soltar-se diante de tanta beleza e esperança.
Entram
alguns clientes. Jamil atende, prestativo e calmo. O calor agora parecia chegar
ao seu ponto máximo enquanto os ventiladores de teto zuniam monotonamente, lembrando
o canto ecoante de tribos que nunca vira. Tribos enterradas na areia fria como
formigas geometricamente pregadas em volta do fogo, em terras que nunca
visitara.
Pisa no
degrau da porta uma mulher de cabelos castanhos, aparenta cerca de quarenta
anos. Deve estar procurando um tapete para sua casa, pensa Jamil. Ela abre um
sorriso franco e pergunta o preço dos tapetes encostados à beira da calçada.
Traz em volta do pescoço um lenço, graciosamente disposto sobre o colo e que
lhe conferia algo de diferente. A mulher examina os tapetes.
É preciso sentir
a amplidão do deserto para aprender a confiar nos passos que levam ao futuro. É preciso saber o que há além do que não se pode distinguir ao longe,
na linha trêmula do horizonte que aferventa o ar... Jamil dissimula os pensamentos
longínquos e fora de hora e lugar.
Observa os
movimentos da cliente, sua maneira de portar as mãos. O movimento destas mãos,
não de outras. A lentidão do vento morno, resto de tempestade de areia, silvando entre dedos, a pele das
palmas finamente cravadas pelas linhas do destino.
Então ela
lhe diz com ternura no rosto e uma leve risada enquanto percorre um tapete com
minuciosa atenção. “Este aqui é uma beleza, mas não deve ter vindo do deserto para
chegar até aqui, não é mesmo?”
Não foi mais
possível conter-lhe a sensação da brisa que subia naquele momento e refrescava,
revolvendo com delicadeza a duna-cidade ao entardecer. A brisa não era quente,
nem fria, elevava-se volátil e perfumada pelo cheiro de uma caravana distante, emoldurada
pelo tecido uniforme feito de cristais de areia fina, que se estendiam até o infinito...
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