domingo, 4 de novembro de 2012

Sandy e o medo das mudanças climáticas


O furacão Sandy passou pelos Estados Unidos, mas deixou parte de seu rastro em toda a comunidade global, que, perplexa, assiste a fragilidade dos sistemas e estruturas nas quais sempre depositou grande parte de sua tranquilidade e segurança.

Em uma sociedade desacostumada com a ausência de controle sobre quase todas as circunstâncias, a passagem do furacão desperta um sentimento ímpar, que destoa da correria cotidiana como uma grande pausa, um silêncio e uma incerteza íntima, que incomoda até mesmo as consciências mais endurecidas.

Surpreende, no entanto, que as vozes que se propagam nos meios de informação, principalmente aqueles de grande escala, reagiram com excessiva cautela à associação do fenômeno com as mudanças climáticas. Surpreende que a negativa a esta consideração, tenha tomado quase tanto espaço quanto a discussão da relação entre Sandy e o agravamento das mudanças climáticas. É possível tentar esconder o tema do aquecimento global das pautas e manchetes, mas não é possível esconder o medo e assombro que se revela nestas próprias tentativas. As pessoas têm medo.

Medo das mudanças climáticas? Do imprevisível na natureza? Da sujeição a um sistema do qual não temos controle? Creio que sim, mas não completamente. O primeiro medo, que desatado se revela aos olhos, é de outra natureza.

O primeiro medo vem lá do fundo, da sala escondida no edifício do espírito de nosso tempo, indicando que “não temos razão”. Pois se ficar comprovado, que sim, o aquecimento global e as mudanças climáticas estão em curso, toda uma legião, principalmente de lideranças, verá estampada em suas faces, a vergonha indelével de ter errado e persistido no erro.

Tanto os formadores de opinião, quanto parte da opinião pública, temem, pavorosamente, terem feito tudo errado, o tempo todo.

É ingenuidade atribuir aos grupos petrolíferos, por exemplo, o topo de uma cadeia de responsabilidade. Está tudo errado, estamos todos errados. Pois as mudanças climáticas não provêm de fonte única, elas são resultado de uma intrincada rede de efeitos em desequilíbrio, de múltiplas contribuições.

O medo que vem primeiro, mesmo inconsciente, parece vir do reconhecimento de que deveríamos estar fazendo tudo diametralmente diferente do que estamos fazendo agora, nossos governos, nossas indústrias, nosso transporte, nossas vidas.  O medo não é somente em relação a constatação do aquecimento global, o medo que vem antes é um receio generalizado sobre nossas ações, em todos os âmbitos.

Uma vez reconhecido este medo, outros medos, provavelmente ligados à urgência da situação, virão. Mas nem mesmo ainda este primeiro medo conseguimos reconhecer com clareza, pois estamos cegos pelos medos do ego, que saltam à frente e obstruem a percepção da realidade. O medo de estar errado é um deles.

Todos os líderes internacionais estão plenamente cientes do comportamento climático e das catástrofes naturais, validadas pela comunidade científica. Não é novidade, não há motivo para espanto. E o argumento central dos céticos das mudanças climáticas, que afirma que Sandy poderia ter ocorrido mesmo em condições normais, é apenas uma construção de linguagem, silogismo fechado em si mesmo. Um malabarismo racional que qualquer bom advogado é capaz de fazer com maestria para provar qualquer coisa. Tudo poderia acontecer mesmo sem o aquecimento global, a terra poderia mover suas placas tectônicas, um meteoro poderia cair, as espécies poderiam entrar em extinção sem o aquecimento global e as mudanças climáticas. Sandy poderia ter ocorrido fora de qualquer cenário com relação ao aquecimento global, mas acontece que ele não ocorreu. Estamos em uma conjuntura de mudanças climáticas, só por isso o furacão Sandy, uma ocorrência climática, não poderia ser analisado fora dela. O fenômeno que vivemos agora, algo extremamente peculiar na história da humanidade, é uma variável impossível de se isolar na análise do fato.

A bandeira do “senão”, neste caso, é tecida com panos quentes. Pelo senão, todo o improvável se sustenta e todos os argumentos são postos em contradição. Há quem compre o argumento e se orgulhe em sair repetindo por aí os clichês e bordões que inflamam a arena em que se debatem os prós e contras da grande mídia. Isso é um esporte. Mas as mudanças climáticas são alheias às nossas distrações, elas prosseguem objetivamente.

Enquanto isso, uma legião de apavorados mal sabe se usa as mãos para fechar os próprios olhos, ou os olhos dos outros.

Para encerrar, um vídeo sem nenhuma palavra, para conversar em uma outra linguagem sobre aquilo que ninguém quer falar:




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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cinquenta tons de Carminha

O que se fala. Por que se fala. Por que se ouve.

Em um passado, sim, muito distante, o silêncio ainda era uma qualidade. Símbolo de honradez, honestidade e exatidão, falar pouco era a medida da sabedoria. Em sociedades que falavam tão e somente o necessário e útil havia pouco espaço para a mentira, a fofoca e a corrupção. Hoje o silêncio, quando não incômodo, soa estranho. Falar sobre outra coisa, que não o que se fala, parece fora de propósito. E não se falar sobre o que se fala em todo lugar —melhor nem falar sobre isso.


Não é a toa que em alguns mosteiros e retiros existe o voto de silêncio, como um esquisito remédio a ser tomado de vez em quando, com toda razão. O silêncio é o exercício ideal para se chegar à essência das coisas, ao seu núcleo principal e inalterado. Através dele recordamos que sentir e ser vêm primeiro do que mostrar e demonstrar algo ao outro. Hoje em dia, invertemos este fluxo. Pois se parássemos para sentir... Ah se parássemos.

Nesse imenso falatório no qual submerjo todos os dias ao desbravar a rotina cotidiana, Carminha e Cinquenta Tons de Cinza me perseguem. Tento fugir, mas quando não estão no discurso uníssono das trivialidades, eles me encontram em carne, osso, páginas e pixels. No metrô, logo de manhã, Carminha, Tufão e Nina já estão nos televisores, em pleno veneno, quando mal descolei as pálpebras da noite anterior. No horário político, a propaganda eleitoral de um candidato a prefeito de minha cidade, cita as palavrinhas mágicas: Tufão, Carminha e Nina, e assim ganha o Brasil. Na manhã seguinte, Arnaldo Jabor, na voz do rádio, pergunta quem será punido ao final do julgamento do mensalão, Carminha ou José Dirceu? Carminha compete com o horário político, com o julgamento do mensalão. Sem dúvida sairá vitoriosa, sua audiência sobre eles é garantida.

Com os enésimos exemplares de Cinquenta Tons de Cinza é um pouco pior. Como eles não dependem de televisores, se espalham como gremlins pela cidade, e em qualquer lugar onde eu esteja. Outro dia uma moça, de olhos arregalados, lia o livro enquanto atravessava a faixa de pedestres em plena Avenida Paulista. No mundo em que eu vivo, a sociedade se enamorou facilmente pelos lazeres perversos destes dois produtos culturais. Ambos são a expressão legítima de um mesmo querer: quanto pior, melhor. Ambos celebram e atestam o gosto pela dor, seja na trama ou na própria experiência que proporcionam ao público, que encontra no sofrimento um objeto de fruição.

E Cinquenta Tons de Cinza está na capa da revista de maior circulação do Brasil. Um assunto de importância Nacional. Sem surpresa, políticos foram convidados a darem seu depoimento sobre a obra. Carminha está no horário eleitoral, Cinquenta Tons de Cinza na boca da Ministra do Meio Ambiente (algo tão assombroso de se colocar em uma pauta de revista que chego a duvidar de minha sanidade neste momento). Cinquenta Tons de Cinza e Carminha são atores políticos. Estão na boca dos políticos. Ocupam espaços políticos.

Não demora muito para que comunicadores, jornalistas e todos nós repitamos um pouco mais dessa ladainha que nos cerca, afoitos por assuntos fáceis, aceitação social e venda de capas de revista. Mais e mais, falamos sobre o inútil, comunicamos o vulgar. Reafirmamos um presente vazio. Tijolo por tijolo, moldamos um futuro influenciado pelos fenômenos culturais do hoje. Se todos os best-sellers e sucessos de audiência são retrato de uma época e a linha guia para uma próxima, por que pensar que com estes será diferente? Através de um fenômeno, é como se disséssemos coletivamente, “É disso que gostamos, é isso que queremos ser”. Um belo futuro nos aguarda, repleto de Carminhas e do decadente e vazio personagem de Cinquenta Tons de Cinza, que conversa conosco enquanto Carminha conversa com nossos filhos toda noite pela televisão. Careta? Conservadora? Me chamem do que for, quero Carminha e Mr. Grey ou qualquer pessoa parecida com eles bem longe de mim. Talvez tenha que evitar muita gente no futuro, concluo. No invisível que a cultura deixa no ar, moldamos o visível. Sempre.

E mesmo a mim, que não vejo a novela, não escaparei desta construção. Ao contrário. Hoje à noite ao fechar os olhos, de forma bem visível e teimosa, Carminha mais uma vez estará lá, como um retrato do dia, grudada em minha retina. E de lá, mais uma vez, com a paciência que nem sei de onde tiro, tentarei lhe arrancar em busca de mais amor. Por favor.

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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Arremate


(Continuação de "Alinhavo")

Era seu primeiro dia na casa, mas ali em meio a caixas fechadas e paredes em branco, Sara vivenciava um entre-espaço até então nunca experimentado. Era ela mesma em período de espera.

Caixas fechadas como uma respiração suspensa no ar, que aguarda um novo expirar. Ansiedade talvez permeava seus sentimentos, mas ela calmamente apenas aguardava com os olhos postos nos cantos, cheios da mudança que havia tomado todos os espaços.

Teria ela também mudado para acompanhar a mudança de casa?

Sara era só intervalo.

Entre um arremate e uma nova costura há sempre uma pausa, necessária, refrescante, bem vinda. E ela estava ali, de agulha pousada sobre os joelhos, com os dedos salpicados de pontadas resquícios que o tempo junta e guarda nas mãos de quem coze o cotidiano.

A casinha trazia novos ares, nova fazenda se desdobrando como o melhor futuro possível. Abriu as janelas, que seria dali para frente? O ar entrava e mesclava o aroma de jardim travesso e agridoce com a poeira arrebatada pelo chão. O ar volvia o sol e o céu e Sara observava as partículas de tamanho visível que se exibiam para a luz.

Chega de devaneios.

Muita coisa para limpar, rotinas para virar do avesso, ali tudo teria de ser diferente, a começar pelo espaço, bem menor que seu apartamento. As caixas trazidas denunciavam todos os excessos na vida de Sara e de igual maneira a falta de vida onde coubesse tudo aquilo: cursos de espanhol, aparelhos de ginástica, aulas de bordado, livros de finanças. Quantas Saras poderiam sequer vivenciar metade daquilo com tranquilidade e ainda ter tempo de cerrar os olhos no meio de uma tarde fria em uma poltrona macia?

Tinha fome, mas a geladeira estava vazia, mal a tinha ligado na tomada. E o gás, os armários, toda uma casa aguardava as diretrizes de Sara sobre o desconhecido. E cada escolha era um suplício, definição de uma identidade —ao menos na publicidade era assim: chocolate: carência afetiva; pizza para um: olho maior que a boca; saladinha: utopia demais para o momento. Sara olhou em volta, nem sabia por onde começar.

Mas isso era bom sinal havia lhe dito um amigo, guru das horas aflitas: “Se não sabe por onde começar, ótimo, sinal de que há muitas boas opções disponíveis” dizia ele. Mas Sara estava cansada dos excessos, até de opções. Agora preferiria um script, quadrado, rigoroso e infalível: “O que fazer quando mudar de casa”, ou melhor ainda, “O que fazer primeiro quando mudar de casa”. Seriam ótimos títulos de livro.

De volta à vida real, melhor fazer supermercado. Sabe se lá quantos dias passaria isolada, quiçá afastada da sociedade, em meio a tantas caixas de memórias, brincava ela em pensamento.

Enquanto imaginava o que trazer para casa em uma lista rabiscada de canto de mesa, lembrava das costuras, como sempre.

No arremate, que antes de dar por finda a linha, torna para trás mais um pouco, como quem diz que ali, num tiquinho do que já se foi, algo permanece e com isso está seguro, Sara se encaixava perfeitamente. Ela também estava em arremate desde que comprara a casinha, mas faltava-lhe a voltinha, aquela que retrocede alguns passos para lembrar do que se foi, e do que continuará levando quando mais à frente trocar de linha.

Enfrentou a mudança abarrotada a sua frente com olhos altivos e coragem súbita. Melhor começar pelo passado. Pelo que se foi e ainda é, e pelo que agora não será mais.

Espiou duas caixas vazias, repositórios ideais do que ficaria consigo e do que seguiria em frente. Começar pelo recomeço parecia a melhor e mais sensata alternativa dentre todas as outras. Se há excesso de opções, reduzir ao “sim” ou “não” era tudo o que precisava naquele momento.

*Este texto é continuação do texto "Alinhavo"



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domingo, 8 de julho de 2012

Alinhavo


Estava passeando naquela rua por acaso. O dia havia se alongado e entre um compromisso e outro, pequenos instantes foram guiando os passos de Sara por um bairro tranquilo, rumo ao desconhecido.

Os pensamentos foram se afrouxando. Ela diminuiu o ritmo e enquanto caminhava pela calçada ladeada de lojinhas,  decidiu “dar-se” aquele dia de presente. 

Pensando melhor, um dia inteiro talvez não pudesse, mas aquelas horas pelo menos...

Então se deixou levar por uma coisa e outra que avivavam seu passeio e abriam uma pequena fresta em seu coração. Um bibelô charmoso em uma vitrine, flores nascidas na calçada, uma costura bem feita em um vestido, o cello tocando dentro do ambiente de uma gostosa livraria...

E assim foi. Não comprou nada, não queria nada, bastava-lhe a beleza e o esmero das coisas vistas.

Há muito que andava afogada... Mas aos poucos, as muitas nuvens caóticas, repletas de
urgências, atropelos, palavras atravessadas, incompreensões e desencontros, iam ficando
para trás. Até a memória doce (e não sem sentido, a mais dolorosa) de seu ex-namorado,
principiava sumir e desbotar aos poucos, como água de banho quando escorre entre os dedos,
ele também, em meio aquele lento passeio, agora ousava liquefazer-se.

A beleza do passeio que quase sustentava seus passos numa leveza avessa
ao cotidiano da cidade, valsando seu vestido pra lá e pra cá, levou-a sem saber, justamente
ao encontro silencioso daqueles lugares em que queremos estar, mas não sabemos exatamente como chegar.

Foi quando, sem se anunciar, num vislumbre apressado de uma casinha branca em uma vila,
essa nuvem, junto às outras de pouco afeto, contraiu-se em um último átomo restante e
sumiu no paralelepípedo.

Num pedaço de rua, por um triz de segundo, quando quase ia deixar-se ir mais à frente
sem reparar na casinha branca, seu ser estancou na calçada. Naquele instante foi como se seus olhos, impregnados da visão daquela casinha de vila, aquietassem-se.

Naquele momento, enquanto um gato gordo e listrado vagarosamente inspecionava seu território, Sara abriu as mãos sem perceber e deixou cair delas as últimas memórias gastas
que carregava consigo, com os olhos fixos na casinha.

Ela tinha uma sacada com trepadeiras e muitas folhas secas na entrada. Parecia estranhamente abandonada, e mesmo assim, conservava algo que chamava Sara para perto de si - havia alguma vida naquele lugar. Ela caminhou alguns passos até o portão baixo e antigo da casinha, e olhou para dentro, esquadrinhando com a visão e os ouvidos qualquer sinal de que a casa fosse habitada. Mas ao ver uma placa imobiliária caída no chão, bem próxima à porta de madeira, desconfiou que a casa talvez estivesse à venda. E não estava errada.

Não demorou muito para que pegasse o celular e ligasse para o número indicado na placa.
Enquanto o telefone chamava e ninguém atendia sua ligação, podia sentir a calmaria que
habitava aquele lugar: nenhum som que não viesse dos passarinhos parecia invadir aquela
ruela. A cidade e tudo mais havia ficado para trás, encapsulados em alguma bolha distante de
saudade e confusão, as buzinas, a poluição e seu ex feito fantasma, aguardavam todos do lado
de fora, sem se atrever a adentrar a simpática vilinha.

Alguém atendeu ao telefone do outro lado da linha.

-“Alô” 

Disse Sara ainda receosa do que deveria dizer... E como quase sempre fazia, as vezes com
sucesso e outras nem tanto, disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

- “Eu só queria dizer que achei o telefone de vocês em uma plaquinha, em frente a uma casa,
aqui na Rua Madressilva...”

-“A senhora está interessada em um de nossos imóveis?”

Sara não sabia o que dizer, talvez estivesse ha tanto tempo interessada em tanta coisa. Uma
delas era mudar de rota, contornar o fio de sua vida e leva-lo para outra direção, mas mudar de
casa? Assim, dessa maneira? Havia tantas contas pra pagar ainda, e não sabia nem ao certo
se devia mudar de profissão. Sara gostava do trabalho no escritório de publicidade, mas queria
trabalhar com outra coisa, só não sabia ao certo o que era. Já havia pensado muitas vezes sobre
isso, mas quando tentava explicar o que sentia ou botar os pensamentos em ordem, era tomada por um mar de sensações difusas, coloridas, cheias de cheiros e tecidos. Não sabia por que, mas demorava-se sempre nas lojas de tecido, observando as texturas, as cores e imaginado todas as coisas que poderia fazer com meio metro de pano colorido, tesoura, agulha, linha e...outro tipo de vida. Uma que não era aquela, uma na qual pudesse ficar um pouco mais em silêncio consigo mesma, e dar outro contorno aos próprios modos, hábitos, gostos...a própria mente talvez.

Uma vida que não a fizesse ver tudo com os olhos de quem precisa sempre vender algo a
alguém. Cá com ela mesma, parece que havia deixado de ser publicitária há muito tempo, só
não sabia quanto ainda demoraria para contar a verdade a ela mesma e aos outros.
Principalmente ao seu chefe, que tinha tirado seu sono na noite anterior por causa de um
anúncio de chiclete. Se ela não gostava de chiclete, como iria convencer os outros de que
aquele chiclete horroroso era “uma explosão de sabores exóticos e envolventes como você
nunca experimentou”?

No mundo de Sara e de seu chefe tudo tinha que ser envolvente: do sorvete ao papel higiênico, tudo era “imprescindivelmente envolvente”, mas Sara estava cansada das coisas
imprescindíveis e envolventes. Poderia se viver sem elas? (talvez não sem o sorvete!) Mas
aquela oferta sensória e infinita das coisas compráveis e que ninguém poderia viver
sem, das ofertas imperdíveis, dos lugares inevitáveis, das últimas promoções, tudo se misturava e esgotava algo de vital em Sara, que nem mesmo ela sabia ao certo o que era. O gato gordo deu um bocejo concordando, ele também estava cansado de tudo aquilo.

Sara sentiu os pés pisando firme o paralelepípedo. Destino são fios, é costura, isso era tão
claro... E se é verdade que a toda costura se precede um alinhavo, podia senti-lo agora debaixo dos próprios pés no paralelepípedo; atrás de si nas trepadeiras preguiçosas que descortinavam parte da casinha; no gato que agora dormia, inebriado pelo lusco fusco dos pensamentos de Sara (minúsculos foguetes elétricos explodindo em série por cima de sua cabeça). Puxou o fio, arrematou e cortou a linha.

-“Sim estou.” 

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sábado, 16 de junho de 2012

Abelhas na Rio+20


Um fenômeno chamado "Síndrome do Colapso das Colônias" tem acometido as abelhas nos EUA nos últimos anos. Cientistas verificaram que as colônias estavam diminuindo por conta do desaparecimento repentino das abelhas, sem saber como ou o porquê do fato. As informações publicadas recentemente pelo Estadão, indicam que o fenômeno pode ser atribuído ao uso do inseticida thiamethoxan, comercializado no mundo há mais de dez anos. De acordo com a reportagem, ao entrarem em contato com o inseticida, as abelhas ficariam desorientadas e se perderiam no caminho de volta para suas colméias. 

A reportagem é um pequeno retrato do conceito de interdependência e complexidade, fundamental para o entendimento de qualquer discussão sobre desenvolvimento sustentável. Mais do que um conceito, não há como se pensar em ações para o desenvolvimento sustentável que não sejam concebidas desta forma. O "fazer" não interdependente inviabiliza até a melhor das ideias e decisões sobre o tema. 

No entanto, nas empresas, governos e no comportamento social, o receio é geralmente o mesmo: ou todos promovem a mudança para o desenvolvimento sustentável ou ninguém se atreve, pois mudar sozinho é algo sentido com insegurança e, quase sempre, considerado economicamente inviável.

Se um dos pontos centrais das discussões da Rio+20 é saber como equacionar desenvolvimento social e consumo com a preservação ambiental, sem dúvida seu pano de fundo é a compreensão sobre a necessidade do fazer sistêmico e integrado. Em outras palavras, da necessidade do salto em conjunto. Que seria a desejável substituição do famoso "eu só vou se você for", por um "eu vou, quem vem comigo?". 

Mas e as abelhas? Elas invadiram a conferência? Uma pena que não, pois observá-las seria muito valioso para o bom andamento dos debates na Rio+20.

O caso do desaparecimento das abelhas é o melhor exemplo de como apenas uma pequena interferência dentro de um sistema complexo, pode causar o colapso de uma colônia inteira. Mais que isso, o impacto múltiplo de uma única variável nas colônias de abelhas, é capaz de resultar no declínio da polinização de espécies vegetais, e consequentemente na produção de alimentos em todo mundo, atingindo o abastecimento da população.

Já sabemos que nosso sistema integrado, o planeta em que vivemos, está exposto há muitas interferências negativas, todas elas de influência interdependente, sem exceção. Pessoas, abelhas, geladeiras, carros em oferta e sacolinhas de supermercado. Falando a grosso modo, tudo influencia tudo. Em contrapartida, quais são as influências positivas que nós estamos oferecendo para anular estes efeitos de ação interdependente?

Quando falamos em definições para a Rio+20, a opção dos líderes internacionais por um "não fazer" ou "adiar até 2000 e mais um pouco", deixando a responsabilidade de atingir metas para uma geração futura (metas pensadas para uma configuração de mundo, que na época destas gerações não será mais a mesma) é uma falácia, ou no mínimo uma grande incompreensão.

Incompreensão sobre o fato de que decisões como as que rumam o desenvolvimento sustentável, precisam ser plurais e conjuntas para funcionarem. Precisam trafegar livremente e com consentimento por diferentes esferas da vida em sociedade, sem travar em pontos obscuros ou mal resolvidos desta rede. Em resumo, não é possível que somente certos setores, como a sociedade civil organizada ou parte do empresariado optem por decisões de caráter sustentável, portanto sistêmico, se outros pontos desta rede, conectados de forma interdependente, obstruam a efetivação destas ações. E isso pode ser feito, muitas vezes não de forma deliberadamente mal intencionada, mas apenas inoperante nem por isso menos danosa.

Há incompreensão sobre o fato de que o "não fazer", "adiar" e "só dar o passo quando todo mundo for", também é de alcance sistêmico e causa grande impacto. Um único "não" fazer", pequena variável introduzida em um organismo complexo, tem ação interdependente e multiplicada em seus efeitos e influencia de forma peculiar o resultado final.

O mais interessante, voltando para as abelhas, é que uma das etapas resultantes do processo de intervenção no seu ciclo de vida, é a perda de capital econômico para nós humanos, através da alimentação. Em outras palavras: perda de dinheiro. Pequenas relações de causa e efeito se ligam em uma cadeia sem fim entre processos, pessoas, materiais e recursos, nada está desligado. É por isso que todo o dano socioambiental, em algum momento, apresenta uma manifestação também na forma de um resultado econômico. Não há separação entre o que chamamos de recursos, financeiros, humanos ou ambientais, todo dano custará, em algum momento, algo a alguém. 

Não há como fugir da complexidade, nem da natureza. Se nós separamos em nosso sistema financeiro a correspondência do capital com a vida real, o planeta não tem nada a ver com isso. Pois para sua lógica, recurso é recurso, abelhas são abelhas e chefes de Estado são pessoas com grande poder decisório sobre entradas e saídas destes recursos. Uma vez implementada uma ação, o sistema corresponderá de forma natural e sem desvios. O prejuízo desta separação fictícia entre financeiro, social e ambiental, vivenciaremos depois.

Se pensarmos nas abelhas do caso do inseticida, elas não levaram a substância citada para dentro de suas colmeias. Sua interação sistêmica foi da ordem do "não fazer" (que na vida social julgamos nula, quase sem impacto), as abelhas simplesmente se fizeram ausentes em suas colônias, ali onde eram necessárias, causando impacto em escala nacional. Isso nos mostra que a ausência, de pessoas ou atitudes, ou o que deixa de ser realizado, é também uma opção, uma ação que será invariavelmente potencializada pela estrutura da teia da vida, organizada de forma interdependente.

Agora, nos momentos finais que antecedem a Rio+20, chefes de Estado com decisões de impacto, da ordem do "fazer" e do "não fazer", levarão elementos, acordos e diretrizes de volta para suas colônias. Conscientes ou não no impacto de seus mínimos atos.

Esperamos que o alto zunido que agora ronda os bastidores e eventos da Rio+20, seja ao menos ouvido e compreendido pelas esferas de poder. Caso contrário, nos veremos em pouco tempo consertando não apenas um ou outro dano social, ambiental e econômico, mas tendo que refazer ponto a ponto, cada pedaço da teia amorosamente tecida para nossa sobrevivência que é a vida.

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segunda-feira, 26 de março de 2012

Descoberta de si

Um homem qualquer, tão peculiar como eu e você, acorda de manhã, toma café, sai para a rua e lê na sua frente um cartaz publicitário que lhe lembra de duas coisas: que ele é livre, e necessariamente, feliz. 

O vai e vem dos outdoors e comerciais de TV durante o dia, relembram constantemente seu direito, quase dever, de ser livre e feliz. O homem encontra os amigos, e todos eles parecem felizes e livres. E o homem se diverte como nunca. Nunca durante toda a história da humanidade nos divertimos tanto.

Mas no intervalo entre as diversões o homem não se sente feliz. Aturdido, vai ao psicólogo e paga quanto for necessário, para enfim conseguir ser feliz. O psicólogo repete-lhe as mesmas palavras, que pesam fundo em sua consciência: liberdade e felicidade. “Você é livre, tem o direito de ser feliz”.  Como alguém pode não conseguir ser feliz agora, nos tempos em que aparentemente temos toda a liberdade de que precisamos para fazer isso acontecer?

As duas palavrinhas mágicas, liberdade e felicidade, continuavam andando juntas, mas o homem não sabia explicar porque, nem como usá-las. Liberdade que não lhe traz felicidade, que seria?

Não é privilégio de uma única geração ser movida pela palavra liberdade. Muitos vieram e muitos virão, gravitando em torno do que parece ser muito mais do que um mero desejo. Custo a crer que haja pessoa cujos olhos não esbocem um mínimo interesse, nem que seja um leve tremeluzir das pupilas, ao som dessa palavra.

Houve um tempo em que a consciência latente acerca de uma classe opressora parecia nos mostrar o mais perfeito desenho de um desejo de liberdade– ali parecia estar todo o impedimento da liberdade individual e coletiva. O indivíduo era oprimido também enquanto coletivo, e esse domínio se fazia perceber de forma predominante material, e mais tarde soubemos, também de forma emocional e psicológica. 

O que não sabíamos, é que a investida contra os problemas oriundos da luta de classes, não era outra coisa senão mais um rompante, fração de um desejo maior pela liberdade do ser, e da manifestação deste em sua plena capacidade. A hierarquia social, por mais esmagadora que fosse, ainda não dava conta de reter toda a liberdade da qual um homem pode sentir falta, era apenas mais um grilhão entre muitos.

Esse mesmo desejo por liberdade eclodiu de diferentes formas ao longo da história, e não sem motivo. No renascimento, no iluminismo, na reforma religiosa europeia, nas revoluções do leste europeu, nas latino americanas, nas primaveras ao redor do mundo.

Em resposta, a história tratou de dar o talhe mais adequado a cada geração que se levantou contra estas formas de opressão à liberdade. Sempre soubemos da liberdade pelo que ela não era, e sempre a imaginamos quando não a tínhamos. Sua busca sempre nos acompanhou, quase como uma função vital, algo natural, inerente, constituinte.

Após algum tempo, ainda no passado, certos clamores pela liberdade individual pareciam enfim ter sido ouvidos: foi quando o horizonte do conhecimento parecia apontar a direção certa de uma liberdade e felicidade, conquistada a partir do direito de pensar e criar por si próprio, sem o controle de instituições que pareciam sufocar toda e qualquer aspiração à liberdade e ao desenvolvimento da individualidade.

Um pouco depois e de um jeito parecido, a liberdade coletiva também parecia estar muito próxima, quando passamos a usar e gostar mais da palavrinha “democracia”. Mas curiosamente, a democracia (um dos apelidos que demos para liberdade coletiva) não conversou muito bem com a conquista da emancipação do pensamento – um dos apelidos que havíamos dado até então para liberdade individual.

Voltando lá atrás, o tempo passou.  Veio a ciência, o método, a guerra, as transições políticas e transações comerciais. E cada vez menos, o homem via-se (ou acreditava-se), imerso em estruturas que lhe tolhessem a liberdade individual e de seu pensamento. Uma das últimas conquistas aparentes de nossa sociedade foi o direito de falar, a liberdade de expressão. E o homem livre, que agora pode, ou acredita poder, se manifestar das mais inimagináveis maneiras possíveis com seus semelhantes, ainda é um homem preso. Um homem que se esforça em crer que a liberdade de seu pensamento manifestado, é a expressão máxima de sua liberdade. O ponto mais alto que poderia chegar.

A liberdade concedida historicamente não parecia, esse tempo todo, que nos levaria enfim à felicidade mútua, ao convívio pacífico, e à evolução da humanidade? Seria o mais lógico, mas por algum motivo, isso não aconteceu. No caminho, no impulso pela vontade de ser livre, algo insinua que demos algum passo trôpego. Caminhamos sim, evoluímos sim, conquistamos sim. Mas descobrimos que não fomos, nem somos completamente felizes. Nem livres.

O homem levanta do divã do psicólogo e vai para casa. Convence a si próprio que é livre. Busca as respostas em seu pensamento: foi ensinado na escola e desde pequeno a encontrar todas as respostas nele, mas não as encontra. Seu pensamento, agora historicamente livre, lhe parece até ter vida própria: corre de lá pra cá, vai e volta, decide, depois volta atrás, ouve um conselho ou outro, se contradiz, segue sozinho por todas as direções. Mas não encontra um ponto de descanso.

Confuso, percebe que suas próprias leis, agora substituíam tranquilamente as leis que tanto oprimiam o homem ao longo dos séculos... Solidão.

Não encontrava agora sequer inimigos que pudessem ocupar seu espaço de luta.

Então, o homem sozinho, sai de seu centro historicamente cunhado, um universo mental dito livre, e volta a olhar timidamente para o Universo ao seu redor. Vislumbra assustado que não está sozinho. Que não tem em si todas as respostas. Enxerga o caminho de sua solidão cuidadosamente traçado, à parte de tudo que existe além dos limites de seu pensamento. A grandeza lhe assusta.

Tateia dolorosamente pelos dogmas de seu próprio pensamento e dos pensamentos dos outros, definitivamente, não era livre. Havia algo mais em seu interior, pedindo para ser solto e liberto. E o homem sabia, mesmo sem querer, que era dali, daquele lugar que ele não conhecia e que era maior que sua mente, que também vinha o estranho e comum anseio de felicidade.

Que havia dentro dele, vivo e pulsante, que não se esvairia em uma lápide após oitenta e poucos anos de vida? Que era ele em si, que não só cabeça, território livre para abrigar todas as filosofias existentes? Que era ele que não só um corpo, livre em movimento e expressão?

O desejo de liberdade atordoava, cutucava alto e baixo no fundo de sua pouca conhecida completude, rasgava o coro uníssono das multidões, discordava, chorava, se maravilhava, querendo ir além. Porque ainda não era livre?

Se a ausência de liberdade oprime em primeiro lugar aquilo que chamamos de individualidade e sua manifestação, não seria importante perguntar, afinal, o que era essa individualidade? Do que ela se constitui, de onde veio, para onde vai?

O homem silencia. É o primeiro desatar de nós de sua visão e compreensão. Nunca ousara ir além dali. Nunca ousara se perguntar. Nunca notara que o primeiro grilhão, fora fechado com chave própria, forjada nos olhares de seu tempo, cansados e cansativos, desiludidos e imperceptivelmente limitados. Olhos sem brilho e sorrateiramente deprimidos. Brilho nos olhos não é coisa se engane, ou ele existe, ou não existe. Por hora, era apenas o início da descoberta... 

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sábado, 21 de janeiro de 2012

True love is like a dessert

Denyer Barok* é um chef mais conhecido por seus aforismos sobre a vida cotidiana, do que pelas peripécias na cozinha. Deixou as panelas em 93, quando saiu da França (naquela época recém celebrado pelo restaurante Mimettre) para dar lugar a sua paixão verdadeira: dar conselhos e fazer rosquinhas.

No começo não foi fácil arranjar um lugar que lhe coubesse no mundo, não há muito espaço para trovadores sentimentais no reino das panelas, que dissesse fora dele. Veio então para São Paulo e abandonou os elegantes pratos de passarela do Mimettre para fazer rosquinhas– agora, as mais charmosas da cidade- e que ainda vêm com um diferencial: pequenos textos escritos à mão em suas caixinhas, que servem de alento para clientes sedentos de alma e açúcar.

Em uma delas, simples, com apenas 12 biscoitos cuidadosamente empilhados, somente uma frase ocupava o espaço: “True love is like a dessert.” (O amor verdadeiro é como uma sobremesa).

Intrigada fui perguntar ao próprio Denyer o que isso significava. Para minha sorte, ele não gosta muito do estrelato e recebe qualquer um em sua pequena cafeteria nas imediações da cidade. Para a sorte dele, eu gostava de fazer perguntas, o que me rendeu um episódio curioso ao lado do grande chef de rosquinhas e conselhos.

-“Por que o amor verdadeiro é como uma sobremesa Denyer?” Perguntei a ele.

-“Muito simples” respondeu.

"Depois de passar alguns anos em grande restaurantes, começando pelo cargo de auxiliar do sub-assistente de alguma tarefa, e terminando como o Chef pouco amistoso que decidirá o que será servido na semana de acordo com seu humor, você aprende algumas coisas. E muito do que aprendi está relacionado ao amor, ao amor verdadeiro.”

 -“Como assim Denyer?” perguntei.

-“Veja só, eu era capaz de fazer pratos elaborados, elegantes, ou só cozinhar o que os outros gostavam, mas nada disso era amor verdadeiro, nada disso tocava o meu coração.

Amor verdadeiro são como rosquinhas, iguais às que faço hoje! E ninguém me deixava fazer rosquinhas em minha saga pelas cozinhas estreladas. Tentava escapar entre um caldo e um risoto para fazer algumas simples rosquinhas para o café da tarde, mas não havia espaço para elas em minha rotina.”

 Neste momento ele faz uma pausa, se emociona, e continua:

“No máximo conseguia começar a bater os ingredientes, e logo vinham os problemas para resolver, você sabe, a cozinha é um ambiente difícil, é preciso estar preparado. Teve uma época que consegui que houvesse rosquinhas no restaurante, mas como eram muito simples de se fazer, um encarregado podia prepará-las, enquanto eu tinha que dar atenção aos pratos mais elaborados. Isso me enchia de tristeza.

E quando digo que rosquinhas são como o amor verdadeiro, como o casamento, le mariage! Digo isso porque elas nunca falham. Podem não ser um doce apetitoso e colorido, nem aquele prato exótico que você gostaria de experimentar e que há anos você se pergunta por que nunca fez. Mas as cinco ou seis da tarde, tudo o que você vai precisar são rosquinhas amigas. Singelas rosquinhas e uma xícara de chá, que pode até estar frio, mas se as rosquinhas forem como as minhas, elas salvarão sua tarde.

Rosquinhas são a medida certa de sabor, nem mais, nem menos. Não há quem não goste delas. São como um abraço carinhoso e conhecido, um sorriso sincero no fim do dia, um suspiro compartilhado depois de algo que deu errado. Com as rosquinhas, sempre fui feliz, mas demorou para que eu assumisse esta paixão completamente.” – Confessou.

Ninguém quer admitir que passou por uma escalada rumo à fama e deixou tudo para trás para se dedicar às rosquinhas, que aliás, nem são uma sobremesa, apenas um tímido item de pâtisserie. Chamo de sobremesa porque para mim elas valem muito mais do que qualquer crème brûlée de confeitaria, entende?

Mas como tudo na vida tem seu tempo, demorei um pouco para perceber que uma vocação a gente só consegue esconder até certo ponto, e quando percebi que aquilo era amor, cheguei ao meu limite.”

-E como foi isso?

-“É preciso ter amor pelo que se faz, simplesmente porque esse é o ingrediente mágico que faz tudo funcionar, na cozinha, nos relacionamentos, na barbearia. E com as rosquinhas era assim. Muitas vezes a gente deixa o amor escapar preocupado com outras coisas que gravitam em torno do dia-dia, as contas, o cliente insatisfeito, aquela moça que tinha alergia a camarões e não sabia, minha nossa, nunca me esquecerei daquele dia! Enfim tudo isso deixa o amor passar despercebido se você não estiver disposto a vê-lo, compreende?

E ai no final, você se vê rodeado de conquistas, quadros nas paredes, recomendações disputando espaço na edição de sábado nas revistas, e nada disso lhe satisfaz, o amor mesmo, se perdeu. Certo dia me vi sozinho em minha cozinha e elas, somente elas (as rosquinhas) me deram ânimo para juntar um punhado de farinha e preparar algo. É nessas horas em que você se reconhece meu amigo. E quando as vi, douradas, saindo do forno com seu perfume leve e discreto, sabia que estava mais perto das coisas que me faziam sentir eu mesmo. Não que as rosquinhas sejam minha razão existencial, longe disso, mas estar ali, fazendo o que gosto, com gratidão e felicidade, é o que me aproxima de minha razão existencial, do sentido de minha vida.”

-“Você fala em amor verdadeiro, existe então um amor que não é verdadeiro, um falso amor Denyer?”

-“É ai que você chegou no ponto certo, minha cara. Não existe amor falso, ou é amor verdadeiro ou não é amor. O problema é que as pessoas hoje confundem uma porção de coisas com amor, que não são amor de jeito nenhum.

Devo lhe confessar que nós humanos somos péssimos em matéria de amor. E esse amor, que temos pelas coisas, pelas causas, por uma pessoa, por nosso trabalho, é ainda apenas um pequeno amor. Ele na verdade é mínimo, perto do Amor maior, que está em todas as coisas, em nossa existência... O amor pequeno, mesmo quando real, verdadeiro, amor com todas as letras, é só uma pequena mostra, para nós palpável, de um Amor maior, sinônimo de toda Vida. Existir é maravilhoso, você já pensou sobre isso?"

-“O senhor lê filosofia?” Perguntei curiosa.

-“De maneira alguma. A filosofia, se você quiser saber, pode ser extraída de tudo que se queira conhecer verdadeiramente e com profundidade, não é preciso ir à Sorbonne para desvelar a consciência humana, muito pelo contrário, aliás. A filosofia está em tudo minha jovem, é por isso que alguém pode acessá-la até mesmo através de uma fornada de rosquinhas...”


Denyer Barok* é um personagem fictício, assim como este texto, apenas um exercício literário. 


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