segunda-feira, 26 de março de 2012

Descoberta de si

Um homem qualquer, tão peculiar como eu e você, acorda de manhã, toma café, sai para a rua e lê na sua frente um cartaz publicitário que lhe lembra de duas coisas: que ele é livre, e necessariamente, feliz. 

O vai e vem dos outdoors e comerciais de TV durante o dia, relembram constantemente seu direito, quase dever, de ser livre e feliz. O homem encontra os amigos, e todos eles parecem felizes e livres. E o homem se diverte como nunca. Nunca durante toda a história da humanidade nos divertimos tanto.

Mas no intervalo entre as diversões o homem não se sente feliz. Aturdido, vai ao psicólogo e paga quanto for necessário, para enfim conseguir ser feliz. O psicólogo repete-lhe as mesmas palavras, que pesam fundo em sua consciência: liberdade e felicidade. “Você é livre, tem o direito de ser feliz”.  Como alguém pode não conseguir ser feliz agora, nos tempos em que aparentemente temos toda a liberdade de que precisamos para fazer isso acontecer?

As duas palavrinhas mágicas, liberdade e felicidade, continuavam andando juntas, mas o homem não sabia explicar porque, nem como usá-las. Liberdade que não lhe traz felicidade, que seria?

Não é privilégio de uma única geração ser movida pela palavra liberdade. Muitos vieram e muitos virão, gravitando em torno do que parece ser muito mais do que um mero desejo. Custo a crer que haja pessoa cujos olhos não esbocem um mínimo interesse, nem que seja um leve tremeluzir das pupilas, ao som dessa palavra.

Houve um tempo em que a consciência latente acerca de uma classe opressora parecia nos mostrar o mais perfeito desenho de um desejo de liberdade– ali parecia estar todo o impedimento da liberdade individual e coletiva. O indivíduo era oprimido também enquanto coletivo, e esse domínio se fazia perceber de forma predominante material, e mais tarde soubemos, também de forma emocional e psicológica. 

O que não sabíamos, é que a investida contra os problemas oriundos da luta de classes, não era outra coisa senão mais um rompante, fração de um desejo maior pela liberdade do ser, e da manifestação deste em sua plena capacidade. A hierarquia social, por mais esmagadora que fosse, ainda não dava conta de reter toda a liberdade da qual um homem pode sentir falta, era apenas mais um grilhão entre muitos.

Esse mesmo desejo por liberdade eclodiu de diferentes formas ao longo da história, e não sem motivo. No renascimento, no iluminismo, na reforma religiosa europeia, nas revoluções do leste europeu, nas latino americanas, nas primaveras ao redor do mundo.

Em resposta, a história tratou de dar o talhe mais adequado a cada geração que se levantou contra estas formas de opressão à liberdade. Sempre soubemos da liberdade pelo que ela não era, e sempre a imaginamos quando não a tínhamos. Sua busca sempre nos acompanhou, quase como uma função vital, algo natural, inerente, constituinte.

Após algum tempo, ainda no passado, certos clamores pela liberdade individual pareciam enfim ter sido ouvidos: foi quando o horizonte do conhecimento parecia apontar a direção certa de uma liberdade e felicidade, conquistada a partir do direito de pensar e criar por si próprio, sem o controle de instituições que pareciam sufocar toda e qualquer aspiração à liberdade e ao desenvolvimento da individualidade.

Um pouco depois e de um jeito parecido, a liberdade coletiva também parecia estar muito próxima, quando passamos a usar e gostar mais da palavrinha “democracia”. Mas curiosamente, a democracia (um dos apelidos que demos para liberdade coletiva) não conversou muito bem com a conquista da emancipação do pensamento – um dos apelidos que havíamos dado até então para liberdade individual.

Voltando lá atrás, o tempo passou.  Veio a ciência, o método, a guerra, as transições políticas e transações comerciais. E cada vez menos, o homem via-se (ou acreditava-se), imerso em estruturas que lhe tolhessem a liberdade individual e de seu pensamento. Uma das últimas conquistas aparentes de nossa sociedade foi o direito de falar, a liberdade de expressão. E o homem livre, que agora pode, ou acredita poder, se manifestar das mais inimagináveis maneiras possíveis com seus semelhantes, ainda é um homem preso. Um homem que se esforça em crer que a liberdade de seu pensamento manifestado, é a expressão máxima de sua liberdade. O ponto mais alto que poderia chegar.

A liberdade concedida historicamente não parecia, esse tempo todo, que nos levaria enfim à felicidade mútua, ao convívio pacífico, e à evolução da humanidade? Seria o mais lógico, mas por algum motivo, isso não aconteceu. No caminho, no impulso pela vontade de ser livre, algo insinua que demos algum passo trôpego. Caminhamos sim, evoluímos sim, conquistamos sim. Mas descobrimos que não fomos, nem somos completamente felizes. Nem livres.

O homem levanta do divã do psicólogo e vai para casa. Convence a si próprio que é livre. Busca as respostas em seu pensamento: foi ensinado na escola e desde pequeno a encontrar todas as respostas nele, mas não as encontra. Seu pensamento, agora historicamente livre, lhe parece até ter vida própria: corre de lá pra cá, vai e volta, decide, depois volta atrás, ouve um conselho ou outro, se contradiz, segue sozinho por todas as direções. Mas não encontra um ponto de descanso.

Confuso, percebe que suas próprias leis, agora substituíam tranquilamente as leis que tanto oprimiam o homem ao longo dos séculos... Solidão.

Não encontrava agora sequer inimigos que pudessem ocupar seu espaço de luta.

Então, o homem sozinho, sai de seu centro historicamente cunhado, um universo mental dito livre, e volta a olhar timidamente para o Universo ao seu redor. Vislumbra assustado que não está sozinho. Que não tem em si todas as respostas. Enxerga o caminho de sua solidão cuidadosamente traçado, à parte de tudo que existe além dos limites de seu pensamento. A grandeza lhe assusta.

Tateia dolorosamente pelos dogmas de seu próprio pensamento e dos pensamentos dos outros, definitivamente, não era livre. Havia algo mais em seu interior, pedindo para ser solto e liberto. E o homem sabia, mesmo sem querer, que era dali, daquele lugar que ele não conhecia e que era maior que sua mente, que também vinha o estranho e comum anseio de felicidade.

Que havia dentro dele, vivo e pulsante, que não se esvairia em uma lápide após oitenta e poucos anos de vida? Que era ele em si, que não só cabeça, território livre para abrigar todas as filosofias existentes? Que era ele que não só um corpo, livre em movimento e expressão?

O desejo de liberdade atordoava, cutucava alto e baixo no fundo de sua pouca conhecida completude, rasgava o coro uníssono das multidões, discordava, chorava, se maravilhava, querendo ir além. Porque ainda não era livre?

Se a ausência de liberdade oprime em primeiro lugar aquilo que chamamos de individualidade e sua manifestação, não seria importante perguntar, afinal, o que era essa individualidade? Do que ela se constitui, de onde veio, para onde vai?

O homem silencia. É o primeiro desatar de nós de sua visão e compreensão. Nunca ousara ir além dali. Nunca ousara se perguntar. Nunca notara que o primeiro grilhão, fora fechado com chave própria, forjada nos olhares de seu tempo, cansados e cansativos, desiludidos e imperceptivelmente limitados. Olhos sem brilho e sorrateiramente deprimidos. Brilho nos olhos não é coisa se engane, ou ele existe, ou não existe. Por hora, era apenas o início da descoberta... 

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