quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cinquenta tons de Carminha

O que se fala. Por que se fala. Por que se ouve.

Em um passado, sim, muito distante, o silêncio ainda era uma qualidade. Símbolo de honradez, honestidade e exatidão, falar pouco era a medida da sabedoria. Em sociedades que falavam tão e somente o necessário e útil havia pouco espaço para a mentira, a fofoca e a corrupção. Hoje o silêncio, quando não incômodo, soa estranho. Falar sobre outra coisa, que não o que se fala, parece fora de propósito. E não se falar sobre o que se fala em todo lugar —melhor nem falar sobre isso.


Não é a toa que em alguns mosteiros e retiros existe o voto de silêncio, como um esquisito remédio a ser tomado de vez em quando, com toda razão. O silêncio é o exercício ideal para se chegar à essência das coisas, ao seu núcleo principal e inalterado. Através dele recordamos que sentir e ser vêm primeiro do que mostrar e demonstrar algo ao outro. Hoje em dia, invertemos este fluxo. Pois se parássemos para sentir... Ah se parássemos.

Nesse imenso falatório no qual submerjo todos os dias ao desbravar a rotina cotidiana, Carminha e Cinquenta Tons de Cinza me perseguem. Tento fugir, mas quando não estão no discurso uníssono das trivialidades, eles me encontram em carne, osso, páginas e pixels. No metrô, logo de manhã, Carminha, Tufão e Nina já estão nos televisores, em pleno veneno, quando mal descolei as pálpebras da noite anterior. No horário político, a propaganda eleitoral de um candidato a prefeito de minha cidade, cita as palavrinhas mágicas: Tufão, Carminha e Nina, e assim ganha o Brasil. Na manhã seguinte, Arnaldo Jabor, na voz do rádio, pergunta quem será punido ao final do julgamento do mensalão, Carminha ou José Dirceu? Carminha compete com o horário político, com o julgamento do mensalão. Sem dúvida sairá vitoriosa, sua audiência sobre eles é garantida.

Com os enésimos exemplares de Cinquenta Tons de Cinza é um pouco pior. Como eles não dependem de televisores, se espalham como gremlins pela cidade, e em qualquer lugar onde eu esteja. Outro dia uma moça, de olhos arregalados, lia o livro enquanto atravessava a faixa de pedestres em plena Avenida Paulista. No mundo em que eu vivo, a sociedade se enamorou facilmente pelos lazeres perversos destes dois produtos culturais. Ambos são a expressão legítima de um mesmo querer: quanto pior, melhor. Ambos celebram e atestam o gosto pela dor, seja na trama ou na própria experiência que proporcionam ao público, que encontra no sofrimento um objeto de fruição.

E Cinquenta Tons de Cinza está na capa da revista de maior circulação do Brasil. Um assunto de importância Nacional. Sem surpresa, políticos foram convidados a darem seu depoimento sobre a obra. Carminha está no horário eleitoral, Cinquenta Tons de Cinza na boca da Ministra do Meio Ambiente (algo tão assombroso de se colocar em uma pauta de revista que chego a duvidar de minha sanidade neste momento). Cinquenta Tons de Cinza e Carminha são atores políticos. Estão na boca dos políticos. Ocupam espaços políticos.

Não demora muito para que comunicadores, jornalistas e todos nós repitamos um pouco mais dessa ladainha que nos cerca, afoitos por assuntos fáceis, aceitação social e venda de capas de revista. Mais e mais, falamos sobre o inútil, comunicamos o vulgar. Reafirmamos um presente vazio. Tijolo por tijolo, moldamos um futuro influenciado pelos fenômenos culturais do hoje. Se todos os best-sellers e sucessos de audiência são retrato de uma época e a linha guia para uma próxima, por que pensar que com estes será diferente? Através de um fenômeno, é como se disséssemos coletivamente, “É disso que gostamos, é isso que queremos ser”. Um belo futuro nos aguarda, repleto de Carminhas e do decadente e vazio personagem de Cinquenta Tons de Cinza, que conversa conosco enquanto Carminha conversa com nossos filhos toda noite pela televisão. Careta? Conservadora? Me chamem do que for, quero Carminha e Mr. Grey ou qualquer pessoa parecida com eles bem longe de mim. Talvez tenha que evitar muita gente no futuro, concluo. No invisível que a cultura deixa no ar, moldamos o visível. Sempre.

E mesmo a mim, que não vejo a novela, não escaparei desta construção. Ao contrário. Hoje à noite ao fechar os olhos, de forma bem visível e teimosa, Carminha mais uma vez estará lá, como um retrato do dia, grudada em minha retina. E de lá, mais uma vez, com a paciência que nem sei de onde tiro, tentarei lhe arrancar em busca de mais amor. Por favor.

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