sexta-feira, 27 de maio de 2011

Procura-se um amor que goste de viajar

Procura-se um amor que goste de viajar. De preferência com idade madura, aparência simpática e um bom coração. Procura-se um amor, que mesmo sem passaporte, saiba lidar com bagagens – friso, isso é muito importante. Que ele saiba carregar as próprias malas, e que elas não pesem tanto a ponto dele ficar para trás em nossa caminhada, nem sejam tão cheias, a ponto de não terem um pouco de espaço livre para as lembranças que traremos de volta de nossos passeios.

Procura-se um amor que não seja um aventureiro desmedido e me deixe sozinha na mata, enquanto segue encantado os barulhos da floresta. Mas que ele também saiba mudar sua rota no mapa quando for preciso para descobrir o desconhecido.

Procura-se um amor paciente. Pois para viajar é preciso ter paciência, já que os imprevistos estão sempre por perto. Por isso, procura-se um amor com bom humor, que possa dar risada da maioria dos planos que não deram certo e partir para o próximo ponto no mapa, com coragem e disposição. Procura-se um amor que tenha simpatia o suficiente para pedir um taxi em qualquer lugar que não saibamos a língua, nem a diferença entre “bom dia” e “boa noite”. Procura-se um amor que aguente longas viagens sentado, pois eu não aguento, e gostaria muito que ele me ensinasse isso se fosse possível.

Procura-se um amor que não sente sempre ao meu lado no trem, mas que por vezes também aproveite sozinho a vista de sua janelinha, enquanto eu aproveito a minha.

Procura-se um amor que queira experimentar novos sabores, e de vez em quando, se vestir com trajes de outras cores, diferentes daquelas do lugar de que viemos. Pois para mim, isso também é uma forma de ver o mundo. E eu vou gostar de ver o mundo assim de vez em quando. Mas que esse amor não se atrapalhe nem se confunda por causa disso.

Eu não quero um amor de cartão postal, daqueles de fim de filme e pôr-do sol. Porque eu sei que isso existe, e é lindo quando existe. Mas eu sei que isso não é tudo, nem o mais belo que se pode vivenciar em conjunto.

Procura-se um companheiro, sobretudo para pequenas viagens, daquelas de atravessar a rua e seguir ao lado, descobrindo e desbravando os traçados do cotidiano. Aquele que viaja sem precisar sair de casa, esse também me parece ideal. E eu peço desculpas para algum amor não viajante, a quem deixei no aeroporto, entregando minha passagem na mão e desistindo do voo, pois meu destino não era o mesmo que o dele. E mesmo que fosse, nossas escalas tão diferentes dariam motivo atrás de motivo para os desencontros.

Eu não quero um amor a quem possa convencer de seguir meus roteiros cegamente. Nem outro, que me faça ir por seus caminhos sem poder partilhar as decisões durante o trajeto. Só quero um amor que vá, por livre e espontânea vontade para o mesmo lugar que eu, e que por isso embarque comigo. Mas cansei de esperar. Aqui no aeroporto o ar é frio e gelado, e outros ares, de despedidas e de reencontros me fazem melancolia. Além do que, aqui não posso ficar, pois é, como tantas outras coisas, lugar de passagem. Mas como você ainda não apareceu, chegou minha vez de embarcar.

Só posso esperar que ao menos um dia, você, mesmo a pé, de trem ou pelo próximo avião, chegue lá. Pego então meu caderninho de viagens, minha mala e minha maquina fotográfica e penso comigo mesma que afinal, continuará sendo divertido viajar sozinha. Dá próxima vez, quem sabe, coloco um anúncio no jornal...

Sento no avião e não demora a conhecida sensação de que esqueci algo em casa, mas não consigo lembrar o que era! Logo eu, que já tinha viajado tanto...

Então vejo que nessa minha lista de detalhes, esqueci de mencionar o mais importante! Que você, companheiro viajante, assim como eu sou, seja alguém que esteja aprendendo a viajar. E que ainda, se não for pedir muito, traga aquilo que eu deixei em casa e não lembro o que era, mas esqueci de trazer.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Tradição e cultura: transformando o intocável

(Também publicado em http://www.library.com.br/artigosdiversos/tradicao.html)

Tradição e cultura são palavras que se conversam mutuamente e que são empregadas para diferentes usos e com diferentes conotações. Alguns pressupostos contemporâneos fazem de “cultura” algo que pode ser tanto o retrato de uma época ou sociedade, como algum recorte específico do substrato que permeia a vida social. Dizemos que algo é cultural, quando está profundamente enraizado em determinado lugar ou coisa, tanto que se torna possível reconhecer algo característico disso em extratos sutis ou mais objetivos da realidade. Outra conotação da palavra “cultura”, dessa vez mais popular, está mais próxima do sentido da arte e do conhecimento. Fazer um programa cultural ou ir a busca de cultura vai ao encontro da origem da palavra, mais próxima do sentido de um “cultivo de algo”. Nesse sentido ela simpatiza com noções ligadas ao aprimoramento, desenvolvimento e evolução.

Já o termo tradição nos leva a pensar em coisas mais antigas, anteriores às culturas do presente e ligadas a conhecimentos remotos, mas nem por isso menos válidos.

No entanto, existem aspectos agradáveis e outros tantos muito desagradáveis que se escondem tranquilamente sob o título de tradição e cultura. Ora, dirá você, agradável e desagradável são coisas subjetivas. “Não se pode julgar uma cultura na qual não estamos imersos” – cuidado aqui, é muito comum se usar essa constatação para fazer proliferar uma lista argumentos relativistas e vagos. Sobre isso falarei mais adiante.

Antes gostaria de dizer que seria mais saudável de nossa parte um pouco mais de cautela para não cair em chavões intelectuais, que através do carimbo destas duas palavras – tradição e cultura – ignoram algo muito valioso, chamado senso de humanidade. Muitos vão querer discutir exaustivamente a terminologia do termo e novamente flertar com o relativismo, então eu diria apenas que se refere a aquilo que nos torna seres humanos, interiormente. E cada um sinta como bem entender ou conseguir. Pois há hoje nessa compreensão, infelizmente, uma necessidade de esforço.

A cautela que vejo ser necessária é simplesmente a de que, nem tudo que é tradição, conserva em si riqueza do passado. Muitas coisas sim. Nem tudo que é tradicional, merece ser guardado e louvado como algo especial, só por não estar presente na atualidade. Algo que muita gente entende por “coisas que estão se perdendo” e que “merecem ser resgatadas”.

O outro passo cauteloso vai à mesma linha da tradição, mas vale para a cultura, que sob esse largo nome, abre os braços às manifestações que vão muito longe do sentido do valor cultural. Algo que poderia pressupor riqueza e cultivo, no sentido de auto aprimoramento e até mesmo arte ou conhecimento.

Um exemplo é o sacrifício e a tortura de animais para fins religiosos. Assunto que virou projeto de lei para virar um direito legal em certas localidades no Brasil. Aqui a palavra cultura assume contornos mais fixos e intocáveis ainda, pois se liga à outra, chamada religião. E nesse assunto ninguém quer mexer não é mesmo? Sobre isso, vale mencionar uma corajosa declaração de um vereador do RS, Beto Moesch, feita em 2004, “Estamos em pleno século 21, e o mundo inteiro avança na harmonização dos seres vivos. Trata-se de uma decisão lamentável, que vai de encontro ao próprio sentido da religião, de buscar a paz de espírito. É um atraso".

Outro exemplo são antigos rituais dolorosos de iniciação para adolescentes em sociedades tribais, que transgridem sem muito esforço quase todos os direitos humanos. Em matéria publicada na Folha, jovens com acesso à Internet tem se questionado sobre a validade destas práticas:

http://www1.folha.uol.com.br/folhateen/912567-jovens-indios-com-acesso-a-internet-questionam-ritos-dolorosos.shtml

Muita gente diz que grupos culturais mais antigos não devem ter suas tradições tocadas, mas eu pergunto, é direito de alguém, tribo ou sociedade, impedir o livre questionamento e a quebra de padrões culturais de um jovem para si? Até que ponto nossa posição perante a cultura dos outros não influencia na própria cultura dos outros? Se todos fossemos contra barbaridades como essas, algo enfim haveria de se modificar. Daríamos força e apoio, social e político a tantos jovens, docilmente subjugados a certas práticas culturais que vão contra a dignidade humana. Será que com apoio, informação e conhecimento, suas próprias culturas não se modificariam? Uma cultura que muda, evolui e vai além, deixa de ser uma cultura? As dinâmicas da civilização também não vieram de mudanças e transformações culturais necessárias? Quem foi que contou para nós que uma cultura não pode se modificar? Tantas e tantas vezes, lideranças e vozes de opinião, ao deixar de se manifestar a respeito disso, coadunam com estas práticas através do silêncio.

A cultura pode sim ser mexida e modificada, pois ela é viva, e não é algo estático que tantos admiram no museu como algo exótico e que deve ser respeitado, mas ai de nós se estivéssemos imersos naquilo, não é mesmo?

Touradas são outro símbolo da cultura e tradição de um país. Pior, viraram esporte. Afinal, a Espanha não seria a Espanha sem o calor de suas touradas que alimentam uma agressividade e perversão indignas à condição humana. A sensação de mal estar e tristeza sobre isso é latente e constante, não há remédio.

Ora, dirá você, “há o agradável e o desagradável para cada um, e deve se respeitar a individualidade cultural dos grupos e sociedades”. Mas eu pergunto, até onde vão os grupos e sociedades, no limite em que me tocam? Até onde meu vizinho pode praticar coisas que ferem o senso de humanidade de uma coletividade na qual me incluo? Será que “humanidade” também é algo relativo, e assim, num mundo intelectual, abstrato e vazio de significados ficamos a mercê do nada? A individualidade do outro não pode ser em nenhum aspecto examinada e confrontada com valores como ética, saúde e direitos humanos? A lei e o costume, que moldam a cultura e retomam tradições servem à humanidade até que ponto?

Enquanto coletividade que evolui, não nos seria próprio deixar para trás e nunca mais retomar certas práticas e hábitos que tantos escondem maliciosamente sob o signo dito intocável das manifestações culturais e tradicionais? Se eu pudesse fazer alguma pergunta à sociedade, eu perguntaria por que esse medo teimoso em perder certas coisas do passado? Nós mesmos, julgando liberdade desmedida abandonamos sem dó aquilo que achamos desagradável. Por que então querer preservar e repetir passos dados no passado que hoje, só nos impedem de caminhar para o futuro?

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O forno e seus fantasmas

Queimei o dedo no forno semana passada. Esta doendo até agora e ainda não cicatrizou. Mas acho que pior do que ter me queimado, foi ter encontrado uma explicação para a queimadura. Dizia num livro que pessoas que tem acidentes domésticos com queimaduras, refletem um aspecto inconsciente de sua vida na qual ignoram algum perigo e estão literalmente brincando com fogo. E do forno saíram milhões de cismas sobre subjetividades que iam desde a influência do casamento real na sociedade até o porquê dos porquês. Psicólogos nos prestam um grande favor às vezes com suas explicações sobre coisas que nos passam despercebidas, mas sem o apoio da intuição, do bom senso e de uma boa sintonização com o que realmente vale a pena, corremos o risco de fabricar fantasmas com qualquer coisa que nos apareça. E eu que naquele dia só queria tomar café da manha, entre pãezinhos e fantasmas, acabei me esquecendo de curar meu dedo.

Pode ser que eu estivesse ignorando algum aspecto simbólico inconsciente da minha vida colocando a mão no fogo sem saber, mas acho que dessa vez, preferi que ficasse inconsciente mesmo. Além do mais, parece que a teima, a fantasia e a superstição estão sempre próximas e gostam muito de andar juntas por ai. Acho que no fundo no fundo, tudo que eu precisava era a voltar a atenção para mim mesma e para meu dedo machucado. Então fechei o forno com seus fantasmas lá dentro e fui atrás de um band-aid.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Jackie

Jackie é uma cachorrinha terrível. Tem uma personalidade tão forte, que muitas vezes temos de chamar ela pelo nome inteiro, Jaqueline. Que nem criança, que na hora da bronca, não é mais Carol, nem Ca, mais somente Caroline, ela mesma, sem desculpa para ser confundida com outra pessoa.

Pois bem, Jaqueline é uma vira latinha tão danada e incomum, que por isso mesmo acabou nos saindo uma ótima professora. Jaqueline quer minha atenção o tempo todo, e não há nada nesse mundo que a faça parar de pular em cima de mim – em qualquer circunstância. Pede atenção constante, e se não dou, simplesmente morde minha mão, bem ao estilo "Charlie bit my finger"
(vide: http://www.youtube.com/watch?v=_OBlgSz8sSM).

Ela também é muito espivetada, ansiosa e esta sempre falando, na língua dela é claro, mas não para de fazer barulhinhos, uivos e latidos, e outros sons estranhos, que meu pai classifica simplemente como “barulhos muito doidos”.

Jaqueline é exagerada, come demais, esta sempre correndo, tropeçando, caindo, dando cambalhota e se espatifando nas coisas. As vezes ela me lembra eu mesma quando criança. Mas acho que até nisso ela me supera.

Dentre tantas coisas, Jaqueline me ensinou a respeitar o espaço do outro. Ela é muito ciumenta com nosso outro cãozinho, o Juca, um vira lata monástico e introvertido que prefere o silêncio do repouso e se abstém de toda e qualquer confusão. Causar não é com ele, em nenhuma hipótese. Pois bem, Jackie, em sua extrema empolgação, não nos deixa chegar perto do Juca. Rosna, faz cena e late para ele. Jaqueline também não nos deixa pegar nada na mão que não possa ser mordido e possuído exclusivamente por ela, bem longe de qualquer um. É por isso que ela me ensinou a partilhar as coisas. Por mais que eu saiba que minhas coisas a serem partilhadas estão bem além de uma bolinha e alguns tapetinhos. Jackie também não nos deixa abrir gavetas, sem pular dentro, querendo ficar ali. Aliás, não há espaço que ela não possa ocupar, e não foram raras as vezes que ela sentou em cima do Juca (que é bem maior que ela), ou passou por cima dele, enquanto ele, resignado, franzia a testa frente ao incompreensível. Um outro hábito engraçado é quando ela sai correndo por ai e ao colidir com o Juca, dá lhe umas boas latidas e rosnadas, como quem diz: “quem é você que ousa se colocar no meu caminho, grandalhão?”. Jackie realmente é insuperável. Me faz lembrar quantas vezes batemos cegos contra paredes imóveis, julgando que elas se colocam em nosso caminho, interceptando nossa correria.

A última de Jackie foi seu comportamento peculiar na presença de estranhos. Alguém já viu algum cachorro rosnar e pedir carinho ao mesmo tempo, abanando o rabo timidamente? Eu não. Pensando bem, Jackie me lembra mais a raça humana do que sua própria espécie. Quantos de nós já sorrimos por fora para outras pessoas, abanando o rabinho, mas rangendo os dentes de vontade de dizer: “ei, não gosto de estar na sua companhia, você me dá medo e vontade de me defender”. Ou então pior, ficamos na defensiva, cheios de armaduras e com os dentes a mostra, quando tudo que queremos, lá no fundo, é abanar o rabinho e dar e receber carinho.