domingo, 17 de fevereiro de 2013

O futuro dos filhos dos outros

"Enquanto a sustentabilidade for tratada como o supérfluo e nossas próprias palavras não refletirem essa consciência viva e real, continuaremos a pensar nela somente como algo importante para o futuro de nossos filhos, enquanto de soslaio, um leão amazônico nos espreita, mais perto do que nunca."

Comunicar para a sustentabilidade não é uma tarefa fácil.

Enquanto alguns não aguentam mais ouvir a palavra sustentabilidade, que prolifera em todos os lugares, produtos e discursos, outros ainda ficam receosos diante do conceito, quando não o ignoram. Uma outra boa parte, não raro, relaciona sem muito jeito sustentabilidade à ecologia, trazendo ao imaginário imagens como árvores, araras, um leão rugindo ameaçadoramente e a floresta Amazônica. Um leão amazônico.

O problema esta no fato de que os leões estão muito longe e nós, e a Amazônia ainda é, para muitos um Eldorado de lendas, estilizado como um souvenir.

Na visão mais comum do conceito de sustentabilidade para o grande público, as plantas do jardim, a Amazônia, a vida selvagem e os leões, parecem estar mais próximos da palavra sustentabilidade do que as enchentes nas ruas, a poluição dos automóveis, o lixo doméstico e as relações de trabalho. Ninguém vê sustentabilidade nas filas dos hospitais, nos morros das favelas, nos pássaros vendidos em gaiolas. Ninguém vê nas calçadas cimentadas e impermeáveis, no mandato dos governantes, no escapamento do carro, nas notícias do rádio que anunciam com alarme que o Brasil não está crescendo quanto deveria. Poucos vêem a sustentabilidade ali, exatamente onde ela está, e mais próxima impossível.

Diante da tarefa de comunicar para a sustentabilidade, o pobre leão amazônico e as imagens e conceitos populares que temos do conceito de sustentabilidade não dão conta do recado, principalmente em tempos de crise socioambiental.

Não culpo ninguém, a sustentabilidade é mesmo uma palavra recente, foi citada pela primeira vez no século dezoito, mas passou a ser usada da forma como é hoje só no ano em que eu nasci. A sustentabilidade tem a idade do universo, mas a palavra tem praticamente a minha idade. O problema é que ela está muito mais próxima de mim e de todos, do que imaginamos. Ela anda na nossa cola, qualquer dia olharemos para trás e levaremos um susto: ela sempre esteve lá o tempo todo, e seu rastro é o nosso também.

É por isso que temos que comunicar para a sustentabilidade, e fazer isso melhor do que temos feito até agora. O imaginário popular se apropria da ideia socioambiental ainda com muita distância, sem saber que a sustentabilidade está para as pessoas e para natureza em igual medida. Canso de ver vozes de opinião repetindo que estão pensando nas pessoas, e depois na sustentabilidade, como se ela fosse perfumaria, jardinagem, item supérfluo na cultura organizacional e urbana, por exemplo. Nas ideias, no discurso comum, a sustentabilidade ainda está relegada aos quintais e parques, ela não é urgente, e sim acessório. E é justamente para essas vozes (e para os que as ouvem) que temos que comunicar em dobro sobre a sustentabilidade, pois divulgam uma ideia dicotômica e errada, que reforça a separação entre homem e natureza fundida no antigo ideário do progresso megalomaníaco e faminto.

É difícil demonstrar como a sustentabilidade está junto de nós, por isso precisamos trazê-la mais para perto. Extrapolar as áreas verdes e colocar ela em nossa mesa, em nosso consumo. Temos que dividir nossa cultura com ela, nosso desejos e angústias mais profundas, pois a sustentabilidade está lá também, nas dobras de nosso comportamento.

Mas será que estamos fazendo isso do jeito certo?

Em uma época de tantas contradições, duvido sempre dos discursos demasiado fáceis, mascados como chiclete, gastos, usados e com pouco poder de transformação. As palavras tem que movimentar, mover algo. E se necessário, causar o desconforto característico de uma colisão, quando se deparam com um ambiente por demais rígido e paralisado. Nem que seja o desconforto de um grão de areia dentro de uma ostra, as palavras devem construir e transformar, essa é sua função.

Da boca para fora
Faça um teste: saia às ruas e pergunte às pessoas por que a sustentabilidade é importante.

Duvido não encontrar uma menção sequer ao "futuro dos nossos filhos". O futuro dos nosso filhos está sempre lá, nas frases das multidões, indefinido, pairando na esfera etérea de um temor misturado a um tempo nunca presente e nebuloso.

Repare, no entanto, que algumas ideias  podem se esconder nessa fala singular com terrível evidência: que só conseguimos pensar no planeta por aquilo que tange ao nosso (des)conforto mais pessoal e próximo. A imagem mental e emocional que nos mobiliza para o bem da humanidade e do meio ambiente é a de nossos bebês, e não a da própria natureza e população em risco. Não há algo de estranho ou ingênuo nisso?

Também neste pensamento, sem saber replicamos uma velha mentalidade utilitarista da natureza: temos que cuidar da natureza para nossos filhos usarem no futuro, de modo passivo, cuidar para alguém poder usar com tranquilidade. Poucos falam "temos que cuidar para nossos filhos continuarem cuidando" ou "temos que ensinar nossos filhos a cuidarem quando chegar a vez deles de cuidarem". Algo muito sutil, mas perceptível.

Outro ponto fundamental da questão é que sim, a sustentabilidade é sem dúvida algo também para o futuro, para as próximas gerações, representada por nossos filhos. Mas sua importância passa antes e urgentemente pelo agora. Nesta busca, desafio encontrar alguém que admita que a sustentabilidade é algo importante para o presente, para os pais dos nossos filhos. Ao falar da sustentabilidade como um problema que deve ser resolvido por causa de uma situação futura, podemos sem querer, afirmar que a questão não é tão urgente ou que quase não existe no presente. Por trás da sustentabilidade para nossos filhos, pode se esconder a crença fácil de que hoje está tudo bem, o problema mesmo só virá no futuro, quando o tempo de nossos filhos (e entenda-se aqui, netos, sobrinhos e etc.) chegar.

Da boca para dentro
Façamos então um exercício diferente, saia às ruas, mas não pergunte às pessoas sobre sustentabilidade. Pergunte sobre o futuro de seus filhos, o que as pessoas estão fazendo hoje, praticamente, para garantir o futuro de seus filhos.

Espante-se quando a maioria das respostas caminhar rumo a um modo de proteção e sobrevivência individual, frente às adversidades já esperadas. (Espere, mas não estava tudo bem no presente?). Proteções e garantias que já se anunciam para o futuro dos filhos: a condição da educação diferenciada, a garantia ao sistema de saúde particular, o acesso aos bens de consumo de ponta, às belezas naturais intocadas, disputadas em algum paraíso internacional. Itens praticamente descolados da previsão de um futuro sustentável, qualidade de vida e bem estar coletivo, que esperávamos para o mundo em que nossos filhos iriam viver. Mas, peraí, o futuro dos nossos filhos não tinha tudo a ver com sustentabilidade quando perguntávamos sobre a importância da mesma?

Quando perguntamos sobre o futuro dos nossos filhos, nos vemos já esperando e preparando-os para um futuro completamente insustentável. Será que nisso não pressentimos o desfecho do atual de um presente já comprometido? Será que no fundo estamos agindo no presente para a sustentabilidade do futuro dos filhos ou nos preparando para a insustentabilidade, de forma paliativa, resignada, privada e egoísta?

Olhe bem: a primeira pergunta, sobre a importância da sustentabilidade, evoca imagens de um belo planeta esperando para ser usado por nossos filhos em um tempo muito distante, enquanto que a pergunta concreta sobre a relação do presente com o futuro da próxima geração traz a tona preocupações bem mais sérias e imagens ameaçadoras. A contradição examinada nestas falas nos mostra que nem mesmo sabemos no que acreditamos, e a distância entre os discursos e crenças se confundem em um estranho jogo de esperança, medo, autoengano e ilusão. Tudo isso salpicado de frases clichês e porções midiáticas de fantasia sobre a realidade.

O leão amazônico espera calmamente
Desconfio que ninguém quer estar aqui quando o tempo da sustentabilidade (aquele do futuro dos nossos filhos) chegar.

Os pais se preparam para um mundo mais desigual, mais insustentável, carente e com disputa de recursos naturais: terra, água, comida e energia elétrica para seus filhos. Desconfio ousadamente, (admito), que o futuro econômico, social e cultural que os pais preparam e no qual depositam sua tranquilidade é na verdade um seguro contra as coisas que estão deixando de fazer hoje. Um seguro para protegê-los dos problemas de insustentabilidade que já temos hoje. Mas poucos conseguem imaginar que a busca da sustentabilidade tem tudo a ver com estes mesmos problemas que querem evitar para os filhos, dos quais buscam protegê-los no futuro. Parece óbvio, mas não é.

Por outro lado, se nosso agora refletisse a ação para uma melhora mais sustentável, talvez estivéssemos mais tranquilos e despreocupados em relação ao futuro, mas não é assim que o parece.

Enquanto a sustentabilidade for tratada como o supérfluo e nossas próprias palavras não refletirem essa consciência viva e real, continuaremos a pensar nela somente como algo importante para o futuro de nossos filhos, enquanto de soslaio, um leão amazônico nos espreita, mais perto do que nunca. O leão amazônico é a própria fantasia da natureza que dizemos proteger, sem conhecer a fundo sua real dimensão, suas interações e até mesmo sua veracidade. O leão amazônico é a imagem mental que nos levará diretamente para sua cova, confrontando os clichês e slogans publicitários sobre sustentabilidade com a gravidade do momento e da realidade. Por enquanto, ele ruge.

O futuro dos filhos de todo mundo
É por isso que ao comunicar para a sustentabilidade, temos que fazer um revolução em nossa própria maneira de pensar, sentir, avaliar, comunicar e construir ideias e conceitos. Temos que estar mais acordados, ao menos para perceber os absurdos que saem de nossas próprias bocas, isso é tarefa nossa.

Penso que talvez fosse mais sensato relacionar a sustentabilidade, não só com o futuro, mas principalmente com o presente, e não só com nossos filhos, mas com os filhos dos outros também. Com a coletividade, de modo mais altruísta, humano e realista e atual. Mesmo diante do estranhamento, amar os filhos dos outros como amamos os nossos, talvez converse melhor com a ideia de sustentabilidade do que temos tanto falado e feito até agora. Ser sustentável só por causa do futuro dos nossos filhos, no fundo no fundo, pode não ser tão sustentável assim. Se há um bom motivo pelo qual a sustentabilidade, na profundidade de seu conceito, é importante, é por causa do presente dos filhos dos outros.

Comunicar deve mover algo. Façamos outras perguntas, cheguemos a outras respostas, da superficialidade na fala e na reflexão não passaremos um passo em direção à sustentabilidade.

Por Caroline Derschner Videira.

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