(Continuação de "Alinhavo")
Era seu primeiro dia na casa, mas ali em meio a caixas fechadas e paredes em branco, Sara vivenciava um entre-espaço até então nunca experimentado. Era ela mesma em período de espera.
Era seu primeiro dia na casa, mas ali em meio a caixas fechadas e paredes em branco, Sara vivenciava um entre-espaço até então nunca experimentado. Era ela mesma em período de espera.
Caixas fechadas como uma respiração suspensa no ar, que
aguarda um novo expirar. Ansiedade talvez permeava seus sentimentos, mas ela
calmamente apenas aguardava com os olhos postos nos cantos, cheios da mudança
que havia tomado todos os espaços.
Teria ela também mudado para acompanhar a mudança de casa?
Teria ela também mudado para acompanhar a mudança de casa?
Sara era só intervalo.
Entre um arremate e uma nova costura há sempre uma pausa,
necessária, refrescante, bem vinda. E ela estava ali, de agulha pousada sobre
os joelhos, com os dedos salpicados de pontadas —resquícios que o
tempo junta e guarda nas mãos de quem coze o cotidiano.
A casinha trazia novos ares, nova fazenda se desdobrando
como o melhor futuro possível. Abriu as janelas, que seria dali para frente? O
ar entrava e mesclava o aroma de jardim travesso e agridoce com a poeira arrebatada pelo chão. O ar volvia o sol e o céu e Sara observava as partículas
de tamanho visível que se exibiam para a luz.
Chega de devaneios.
Muita coisa para limpar, rotinas para virar do avesso, ali
tudo teria de ser diferente, a começar pelo espaço, bem menor que seu
apartamento. As caixas trazidas denunciavam todos os excessos na vida de Sara e
de igual maneira a falta de vida onde coubesse tudo aquilo: cursos de espanhol,
aparelhos de ginástica, aulas de bordado, livros de finanças. Quantas Saras
poderiam sequer vivenciar metade daquilo com tranquilidade e ainda ter tempo de
cerrar os olhos no meio de uma tarde fria em uma poltrona macia?
Tinha fome, mas a geladeira estava vazia, mal a tinha ligado
na tomada. E o gás, os armários, toda uma casa aguardava as diretrizes de Sara
sobre o desconhecido. E cada escolha era um suplício, definição de uma
identidade —ao menos na publicidade era assim: chocolate: carência afetiva;
pizza para um: olho maior que a boca; saladinha: utopia demais para o momento.
Sara olhou em volta, nem sabia por onde começar.
Mas isso era bom sinal havia lhe dito um amigo, guru das
horas aflitas: “Se não sabe por onde começar, ótimo, sinal de que há muitas
boas opções disponíveis” dizia ele. Mas Sara estava cansada dos excessos, até
de opções. Agora preferiria um script, quadrado, rigoroso e infalível: “O que
fazer quando mudar de casa”, ou melhor ainda, “O que fazer primeiro quando
mudar de casa”. Seriam ótimos títulos de livro.
De volta à vida real, melhor fazer supermercado. Sabe se lá
quantos dias passaria isolada, quiçá afastada da sociedade, em meio a tantas
caixas de memórias, brincava ela em pensamento.
Enquanto imaginava o que trazer para casa em uma lista
rabiscada de canto de mesa, lembrava das costuras, como sempre.
No arremate, que antes de dar por finda a linha, torna para
trás mais um pouco, como quem diz que ali, num tiquinho do que já se foi, algo
permanece e com isso está seguro, Sara se encaixava perfeitamente. Ela também
estava em arremate desde que comprara a casinha, mas faltava-lhe a voltinha,
aquela que retrocede alguns passos para lembrar do que se foi, e do que
continuará levando quando mais à frente trocar de linha.
Enfrentou a mudança abarrotada a sua frente com olhos
altivos e coragem súbita. Melhor começar pelo passado. Pelo que se foi e ainda
é, e pelo que agora não será mais.
Espiou duas caixas vazias, repositórios ideais do que
ficaria consigo e do que seguiria em frente. Começar pelo recomeço parecia a
melhor e mais sensata alternativa dentre todas as outras. Se há excesso de
opções, reduzir ao “sim” ou “não” era tudo o que precisava naquele momento.
*Este texto é continuação do texto "Alinhavo"
*Este texto é continuação do texto "Alinhavo"
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