terça-feira, 8 de novembro de 2011

A economia do botijão de gás

Já era de noite e eu estava na rua quando ela me parou. Tinha pouco mais que a minha idade, talvez uns três ou quatro anos a mais. Usava roupas em bom estado e tinha uma criança ao colo. Era bonita. Estivera andando o dia todo. E eu, naquele dia de sol forte, das poucas caminhadas que tinha dado, já sentia a cabeça doer. A moça me contou que estava procurando emprego de faxineira já fazia dias, e que estava morando na capital porque havia fugido do marido com suas crianças. Pude perceber a vergonha em seus olhos. Ela se desculpou por incomodar, mas disse que precisava urgentemente de um trabalho, qualquer que fosse, para comprar um botijão de gás e alimentar seus filhos no acampamento sem terra em que morava.

Expliquei à moça que não poderia lhe contratar e que não sabia onde pudesse conseguir um trabalho, mas ofereci-lhe um pouco de dinheiro. Foi quando a moça, tomada por um sentimento de tristeza e resignação disse: “Não quero dinheiro moça.”. Ela precisava de um emprego, e sabia disso. Não queria pedir. Sabia também que o dinheiro dado no dia, não valeria tanto quanto a garantia de um trabalho. Seu bem mais caro e de maior urgência era o botijão de gás. R$ 45,00 – o preço de um dia de faxina segundo ela, e muito mal pago, por sinal. Disse-lhe para aceitar o dinheiro, se pudesse ajudar a comprar comida para a criança. Ela aceitou, mas com peso nos olhos, dinheiro não valia tanto quanto trabalho.

A história é semelhante a muitas outras, para quem vive em São Paulo, metrópole cujos bolsões de pobreza e histórias inacreditáveis, não são mais apenas bolsões - são a própria face escondida por trás de nosso modelo de progresso, escrita e estampada nas ruas da cidade. Talvez a história não choque, muitos de nós estão distantes da realidade de fugir às pressas de casa, deixando para trás o pai dos seus filhos e sumindo no mundo. Mas todos nós sabemos quanta razão tinha a moça em preferir um trabalho do que o dinheiro dado. Dinheiro que já havia recebido de outras pessoas em sua caminhada em busca de emprego. Essa sutil diferença entre ganhar dinheiro e receber dinheiro, determinaria para a moça, dois caminhos diferentes de vida a seguir. Provavelmente para seus filhos também.

Mais do que uma faceta de nossa sociedade, essa moça é um retrato de uma complexa situação socioeconômica brasileira, na qual, em escala ampliada, há uma parcela da população em boa situação social disposta a dar dinheiro, mas incapaz de oferecer um trabalho. Pessoas cuja renda capacita ao assistencialismo, mas não são capazes de replicar essa riqueza, provendo trabalho. Há muito mais domésticas oferecendo seus serviços, do que vagas para esse tipo de trabalho em uma metrópole como São Paulo. E é vergonhoso perceber como nossa organização social traz contrariedades tão grandes como essa: é possível doar para muitas  pessoas necessitadas, pois o excedente monetário viabiliza isso, mas não é possível absorver tantas pessoas para dentro de uma dinâmica de geração de renda e riqueza. Isso ainda vai mais além, pois é uma das profundas raízes do que chamamos pobreza endêmica em uma organização social.

Passamos então a repensar uma das muitas causas da pobreza, não como ausência de riqueza monetária produzida por um local (isso não é novidade), nem como disparidade de distribuição desta riqueza, de forma direta, mas como um desequilíbrio na organização do sistema de trabalho, se pensado como um ecossistema único e integrado.

Ainda na sociedade brasileira, confundimos dinheiro com riqueza, duas coisas muitas vezes integradas, mas diferentes. Em termos simples, riqueza é ter o que comer, ter saúde e viver bem. Dinheiro são notas que você guarda no banco, de valor simbólico e instável. Pois bem, a sociedade brasileira produz dinheiro, sua nova classe média e a classe alta possui mais dinheiro do que nunca possuiu, e mesmo assim a riqueza diminui. Enquanto isso, acostumado com uma noção parcial de crescimento econômico e riqueza, o Brasil caminha. Também caminha aquela moça, vendo sua riqueza no tão sonhado botijão de gás, muito mais do que no dinheiro assistencial que toda uma classe é capaz de lhe oferecer.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Ebulição


Existe um momento na vida em que decidimos ser felizes. Um só não, vários. Isso acontece algumas vezes, e geralmente vem depois de um mais ou menos longo período de revisão, ou de um baque, uma queda profunda, certeira, dolorosa e necessária.

A tal da revisão da vida pode acontecer de várias maneiras. Às vezes ela vem quase que inconsciente, rodeando pelas bordas, sussurrando alguma coisinha aqui, outra ali, até dar o grito. Às vezes também não é um grito, mas uma conversa franca com nós mesmos, em que o tempo parece parar e sentamos para conversar conosco, a sós, observando o mundo ao nosso redor e nossa situação nele.

Um amigo querido me descreveu isso de maneira bem simples ao longo das fases da vida. Se uma primeira pergunta que fazemos quando atingimos a maioridade é: “quem eu quero ser?”, o passo seguinte dali a alguns anos, inevitavelmente terá o tom de outra pergunta: “estou sendo o que quero ser?”, e mais tarde talvez de outra, quem sabe derradeira: “eu realmente quero ser o que estou sendo, e que decidi ser?”.

Fases de desenvolvimento à parte, talvez essas perguntas nos revisitem periodicamente com mais frequência do que imaginemos. E no “decidir ser”, alvo de uma meta, vetor de uma força de vontade que constrói a vida, queiramos ou não, muitas coisas pequenas, diárias, rotineiras, esmiúçam um caminho. Falo de vontades profundas e verdadeiras. Não das vontades passageiras e frívolas, que voam com o vento, oscilam com os mercados e mudam junto com a cor da estação. O tipo e a qualidade dessas vontades são o que geralmente somos chamados a avaliar. Pesar e olhar novamente toda vez que aquele momento, a sós, nos chama à salinha da consciência, depois de uma doença, de um revés, de um ou vários sustos, ou mesmo de uma ebulição.

Ebulição? Sim... a tênue consciência de que mesmo na calmaria da vida exterior, aquela que aparece ao outros, algo lentamente fervilha e vem à tona.

Os ursos hibernam, as plantas também. Um recolher de forças e nutrição que prepara algo. Nos ursos, o batimento cardíaco diminui, as funções vitais mudam de ritmo e ele todo se faz processo de um preparo. Nas plantas, as forças vitais também passam por transformações e o próprio período de poda é feito geralmente nessa fase de latência, para que depois, a planta cresça e brote direcionando toda sua  energia na formação de novas folhas e galhos. 

Como disse Cecília Meireles "Aprendi com a primavera; a deixar-me cortar e voltar sempre inteira.". Também temos nossos períodos de podas, hibernação, latência e ebulição. Coisas diferentes mas que em algum momento tocam, com suavidade ou violência aquele que passa por uma transformação. Não sei se “violência” é a palavra mais adequada, no sentido de violar algo, mas mais no sentido de atravessar nossas camadas e balançar nosso interior. Talvez a violência também dependa em muito de quanta resistência opomos às transformações.

Pergunte a alguém, pergunte a você mesmo: no começo, meio ou fim desses processos de transformação e revisão, as pessoas, quer ou não, esbarram na felicidade e também na realidade espiritual, ou espiritualidade. Espiritualidade, não como expressão religiosa, mas como reconhecimento de um Eu espiritual vivo em nosso interior, que caminha em um Universo maravilhoso e abundante. O ser vivo que não se vai com o corpo, matéria sujeita à decomposição na Terra.

Fala-se muito em sentido da vida, mas eu prefiro a palavra propósito. Enquanto que o sentido é tudo aquilo o que nos rodeia e que vai para além do visível, o propósito pode-se dizer que é o que vou fazer com tudo isso. Como vou me posicionar e o que ativamente farei em um Universo tão maravilhoso.

Não é difícil ver como essas pessoas (muitas vezes por algum motivo doloroso) pararam tudo o que estavam fazendo para pensar, sentir e intuir com urgência o que é a felicidade, o propósito do Eu e a realidade interior, espiritual; e como essas questões recorrentemente nos chamam de forma audível em algum momento da vida. Momentos de desfragmentação, observação e reorientação. Momentos maravilhosos, em que algo vem à tona e nos chama para o encontro da felicidade, como se ela fosse não somente uma contingência, como creem os infelizes, mas uma necessidade inerente à própria condição de vida na qual estamos imersos e da qual somos, em pequena parte, sujeitos, e em grande parte, objeto - uma compreensão que passa, via de regra, pela humildade, mas que já é assunto para outro texto...

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Amor de desencontro

Foi só um arranhão. Um arranhãozinho, indo do capô à lanterna do carro, coisa pequena. Então tudo bem, ela pagava e ficava tudo certo. Ele perguntou seu nome, mas ela não respondeu.

-Só um minuto, vou anotar a placa do seu carro primeiro.

Ih, aposto que essa deve bater o carro todo mês – ele pensou.

-Porque você tinha que me fechar daquele jeito? Eu achei que você ia parar.

-Porque sempre a gente tem que parar? Os outros nunca param né?

-Eu achei que você ia parar moça.

-É eu também.

-Você tem seguro?

-Não.

-Eu também não. E agora como é que faz? Quem vai pagar?

-Seria bom se você pudesse fazer a gentileza de assumir a culpa - disse ela.

-Mas não fui eu quem bati em você, foi você quem veio correndo, lá de trás, ouvindo rádio, toda desligada, eu vi.

-Voce viu?

-Ví.

-Como se eu estava lá atrás?

-Eu ví ué, olhei pelo retrovisor e vi você, correndo que nem uma louca.

-Então quer dizer que você me viu e nem deu o trabalho de desacelerar... Pelo contrário, correu mais ainda.

-É por que queria chegar primeiro. Estava atrasado. Aliás, estava não, estou. Agora já perdi a hora.

-Eu também.

-Acho melhor agente sair daqui do meio da rua, lá atrás já está virando um caos.

-E você não vai pagar?

-Você tem telefone?

-Pra que?

-Não, sei. Não é isso que as pessoas fazem quando batem o carro, trocam telefones?

-Vamos estacionar ali do lado

-Ok.

...

-Você nunca bateu o carro? - ela perguntou.

-Não, estava novinho, comprei faz pouco tempo.

-Puxa...

-E você, bate o carro, assim... Com frequência?

-Por que? Parece?

-Só estou perguntando...

-Já bati sim...Mas uma vez só, e pior, foi nessa mesma rua...

-Sério?

-Sério.

-Que coincidência...

-Nem me fale...

-Então quer dizer que você bate sempre, quer dizer, vem sempre aqui?

-É o caminho do trabalho.

-É o meu também.

-E todo mundo sempre corre aqui nessa ruazinha, impressionante. Parece que todo mundo passa por aqui e lembra que tá atrasado.

-É isso também acontece comigo.

- Olha... Me desculpa, eu não queria ter feito isso.

-Na verdade, eu que não devia ter corrido tanto, vi você vindo lá de trás, mas queria chegar primeiro...

-Mas era sua vez de passar.

-Mas você estava com mais pressa do que eu...

-Na verdade, eu nem estava com tanta pressa assim, mas todo mundo correndo, dá até mais pressa, não sei...

-É que essas coisas estão...tipo no ar sabe? Um pega e passa pro outro..sem saber

-Você também acredita nessas coisas?

-Acredito...

-Na verdade, eu quase nunca corro, eu nem sei porque estava correndo...

-Vai ver você tinha que bater o carro mesmo e eu também.

-Será? Não sei... As pessoas não acreditam nisso por ai...

- Ah, não sei, às vezes eu acredito...

- E porque você não fez seguro?

-Eu achei que nunca ia bater o carro. Não, não foi isso, eu achei que nunca ia bater o carro a ponto de precisar do seguro. E você, por que não fez seguro?

-Não sei, descuido. Acho melhor fazer daqui pra frente, já é a segunda vez então...

-Eu tenho um primo que é corretor de seguros sabe... Gente boa ele.

-E porque você não fez seu seguro com ele?

-Qual é seu nome?

-Márcia.

-Olha Márcia, eu não gosto de seguradoras, seguros, enfim, essas coisas só me deixam mais aflito ainda.

-Por quê?

-Porque você está literalmente investindo em uma coisa que quer evitar sabe?

-Mas não é bom prevenir?

-É bom sim, você tem razão.

-Acho que você tem que superar isso sabe?

-Você é psicóloga?

-Sou.

-Ah entendi.

-Entendeu o que? É sério, você tem que fazer um seguro mesmo, olha onde você vive. É loucura não ter seguro hoje em dia.

-É mas você também podia ter pensado nisso do seguro....ai quem sabe, evitaríamos alguns problemas...

-É mas eu não tenho.

-Você quer o telefone do meu primo?

-Quem, o do seguro? Ah pode passar... Nossa estou super atrasada, já perdi meu compromisso. Qual é o seu nome mesmo?

-Fábio. E o seu é Márcia.

-Isso.

-Você ia pra onde mesmo?

-Vila Mariana. Eu trabalho lá.

-Perto de onde?

-Da cinemateca, conhece?

-Sei, sei sim. Eu fui lá uma vez já... Ver um filme... Não esqueço esse dia...

-Que filme?

-Não lembro o nome, mas era sobre um casal...

-Um casal...?

-É um casal desses bem comuns sabe, que fica discutindo a relação o filme inteiro... Muito, muito chato mesmo.

-Mas porque você foi ver então, se era tão chato?

-Eu não sei, achei que minha namorada... Ex-namorada! ia gostar de ver o filme, ai fomos lá ver... Nossa era muito chato mesmo, as músicas davam até sono... Eram uns boleros sofridos... Que filme triste sabe... E o casal discutia e discutia e não saia do lugar. Parecia até que eles gostavam de ficar conversando e discutindo sem parar... Uma loucura...

-Você pelo menos prestou atenção na música.

-É que eu sou músico...

-Legal...

-Agente tem uma banda...

-Bacana

-Eu meu primo e uns amigos nossos...

-O primo do seguro?

-Não outro primo... Família grande, italiana...

-Meu pai também é descendente de italiano... Imigrante

-Você, eu e metade da cidade...

-Uma vez eu fui num museu... Museu do Imigrante, lá na Mooca, você conhece?

- Não, nunca ouvi falar.

-É bem legal lá mesmo... Você pode procurar os registros da sua família, sobrenome e tal... Ver quem veio de navio com quem, de onde vinha, pra onde ia...

-Meus bisavós se conheceram num navio... Essa história é engraçada, eles viajaram seis ou sete meses, e no último dia de viagem se conheceram, só no último dia... Mais um pouco eles tinham ficado sem se conhecer...

-Será?

-É, na verdade eu acho que não... É como eu disse, acho que tem coisas que tem que acontecer mesmo, vai entender... Se quiser depois te conto a história melhor, eu não lembro bem... Mas eles foram bem felizes juntos...pelo menos eles se davam bem...

-É um dia você me conta. Vou ficar feliz em saber a história dos seus bisavós...

-Sério?

-É sim... É que tem a ver com o tema da minha pós da psicologia...

-Sobre o que é a sua pós?

-Tem um nome complicado, mas é sobre a função da memória na formação da personalidade...

-Poxa bacana... Coisa séria hein..

-É... Eu queria fazer já faz muito tempo... Esses dias estava pesquisando sobre a nossa capacidade de lembrar das mesmas coisas do passado, de um jeito diferente, e mudar nossa percepção sobre elas no presente... Quase como acionar um botão... Que podemos apertar a qualquer momento...

-Tipo a lembrança dessa batida daqui para frente...?

-É tipo a lembrança dessa batida daqui pra frente...

-Parece então que agente apertou o botão ao mesmo tempo...

-É...Olha, eu nem sei por que impliquei tanto com esse arranhãozinho.

-Um arranhãozinho com um leve amassado no final...

-E um pedacinho do para-choque caído.

-Não é tão ruim assim.

-Não, não é.

-E agora eu vou olhar pro meu carro amassado, e vou lembrar de você.

-Eu acho que ainda vou lembrar da batida também...meu carro arranhou mais que o seu.

-É verdade, você foi mais prejudicada do que eu.

-Pois é, está desigual.

-Então eu vou ser obrigado a te pagar um café para compensar.

-Mas um café não vai compensar esse dano...

-Não tem problema, eu pago vários.

-De uma só vez?

-Não, posso ir parcelando os cafés se você quiser...

-Em quantas vezes?

-Umas quatro ou cinco quem sabe... Depende de quantos cafés você achar que vale essa batida...

-Acho que vale alguns cafés, talvez uma ida à oficina...

-Que bom... Agente compensa o dano.

-É agente compensa... Aos poucos

-É aos poucos.

-Você vai por ali?

-Eu vou para o outro lado.

-A essa hora não faz mais sentido ir por ali, vou voltar pra casa.
Me desculpe, atrapalhei seu dia.

-Que isso. Foi só um desvio de rota. Acontece.

-Mas que besteira, eu nunca devia ter batido em você, devia ter desacelerado.

-Eu também, e devia ter desviado.

-Sim e você também.

-Mas aí teria sido mais um desencontro.

-Sim, teria...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sweet manipulation

Já não é de hoje que o mesmo assunto bate em minha porta, seja pela boca de um amigo ou amiga, seja pelas palavras de algum teórico, distante no tempo e espaço, próximo em pensamento. Isso porque observar o modus operandi da mídia é uma tarefa que requer anos de estudo, um doutorado e uma tese, ou apenas uma sentada no sofá diante da televisão, com olhos mais abertos e uma mente menos amortecida. Sem desmerecer nenhum dos dois, vamos ao caso.

Não é de hoje que a abordagem infantilizada, por meio da publicidade, da mídia e da política, varre o imaginário popular com uma desenvoltura aterradora.

Mas o que significa dialogar constantemente com um discurso que nos trata como se tivéssemos pouca maturidade? Que efeito psicológico tem a voz que fala conosco através da comunicação como se fossemos carente de entendimento? Que não se aprofunda e permanece sempre na superfície dos lugares comuns e dos consensos previamente aceitos? O discurso é uma arma poderosíssima, capaz de conduzir facilmente pela mão os menos atentos.

Se eu falo com você como se tivesse 10 anos de idade, com pouquíssima ousadia crítica e reforçando silenciosamente que “você não sabe nada, ainda tem muito para aprender”; Se eu falo com você com a tonalidade da voz paternal da experiência, aquela que sabe o que é melhor para “você e sua família”, que tipo de resposta estou esperando de você? E porque será que eu falo sempre de “você e da sua família”? Seja pra vender margarina ou divulgar meu partido, quem foi que abriu a porta da sua casa e reservou um lugar no seu sofá para que eu conheça sua família assim tão bem?

Se uma pessoa fala com você assim, você com certeza vai achar um pouco estranho. Mas se muitas vozes da comunicação falam com você assim o tempo todo, a tendência, como quase em tudo, é achar que a maioria tem razão.

Mas pouco paramos para prestar atenção nessas vozes que dialogam conosco o dia todo. Pouco paramos para ouvir o que elas falam, o que elas tem a dizer, e o que sobra da intenção fundamental revestida de frases de efeito.

Pouco notamos que entre uma trama de consensos altamente digestíveis, facilmente se aderem pedaços de ideias, que despercebidas nesse emaranhado, depois se encontram e se combinam em nosso interior, causando má digestão. E depois nos vemos desconsolados, com a cara vazia e o estômago enrolado, perguntando, “que será que me fez mal?”. Enquanto aquele produto inútil, aquelas memórias do filme ou da novela, aquele político, aquela lei aprovada, aquela emoção ou vontade, permanecem entalados, atravessados em nós, sem conseguir sair.

A voz que fala conosco através da comunicação unidirecional (aquela que não admite resposta), sabe exatamente com quem está falando, quantos anos temos, onde moramos, e se preferimos café ou leite de manhã. Ela que nos diz que emoções teremos ao comprar determinado produto. Ela ilustra nosso desejo de liberdade como sendo andar de 4x4 na lama, com a bravura épica de um batalhão romano, triunfo da condição humana sobre a natureza. Mas no fundo no fundo, tudo que queríamos era a liberdade de sair do mar intransponível de trânsito que atravessa nossa cidade todo fim de tarde, de andar livremente e sem medo pelas ruas... Nossa liberdade não era subir o Aconcágua de jipe depois de um dia cansativo de trabalho.

É ela quem diz que temos direito à liberdade de fumar um cigarro. E depois nos conta que todo mundo tem direito à saúde e à felicidade, e nos vende um plano de saúde. Ela que ensina didaticamente o desafeto mútuo e escancarado diário na maioria das novelas, e depois nos vende pequenas porções de afeto familiar, a cada intervalo, em um pacotinho de Sazon.

Não quero dizer que essa voz- que são várias vozes- como a voz publicitária por exemplo, seja uma espécie de desserviço social, que tudo que faz é corromper o homem. Não. Essa voz também tem sua razão de ser. Ela por si só (o ato do anúncio público de algo ou alguma coisa – publicidade) não corrompe pelo que é, mas sim, pelo modo como é feita.

Não é o sistema que corrompe o homem. É o homem que corrompe o próprio homem, através do sistema. Através de um modo de fazer, de dizer, de anunciar. E continua sendo o homem que dá a tonalidade a todas essas vozes.

Vozes que falam ininterruptamente conosco, sem resposta, e que sabem mais de nós do que nós mesmos. Que sabemos delas? De onde elas vêm? Com quem temos conversado ultimamente esse tempo todo?

domingo, 14 de agosto de 2011

Cães, coleiras e casamentos

Jackie e Juca não sabem passear juntos. Um puxa para um lado enquanto o outro vai para frente e depois para trás, e não demora muito para que eles (e eu também!), fiquemos maravilhosamente enrolados. Se houver um poste ou uma árvore por perto, então a chance da coisa se complicar aumenta muito, e um nó cego não é difícil de prever.

Assim, tentando fazer (a muito custo) com que caminhassem juntos, tive uma ideia brilhante! Eu até poderia patenteá-la, se alguém com um pouco mais de conhecimento sobre cães e física, já não o tivesse feito. Resolvi juntar as duas guias, enrolando-as como se fossem uma só. Alí, através de um ponto de força único, tudo mudou: Juca e Jackie viram-se presos pelo mesmo laço, e não eram mais a mim que puxavam em seus mirabolantes percursos caninos, mas sim um ao outro.

Não demorou muito para que percebessem que estavam, assim juntos, a mercê do movimento um do outro, e que quanto mais se recusassem em andar lado a lado, tranquilamente, mais enrolados ficariam, e dessa vez, não era eu quem seria capaz de coordenar seus movimentos, senão eles mesmos, um em relação ao outro.

Jackie e Juca aprenderam assim, atados, finalmente a andar juntos.

Uma vez entendido o objetivo comum pela força da ocasião (passear!) os dois viram-se subitamente andando na mesma velocidade e na mesma direção, e cada esforço, para frente ou para o lado, cada cheiradinha de grama, cada paradinha no poste, mesmo quando feita em momentos diferentes, era agora compartilhada, e os dois aprenderam a esperar e sentir um ao outro.

Não é nem um pouco legal sair correndo por ai enrolando as coleiras em tudo e em todos, mas isso não fui eu quem disse a eles. Eles simplesmente aprenderam. E aprenderam que cada puxão levaria inevitavelmente o outro junto. Então acordaram silenciosamente em fazer um passeio feliz e calmo. Meus dois vira-latas estavam quase andando a passos de um footing do século dezoito. Que orgulho.

Se eu soubesse que uma lei da física, capaz de coordenar dois vetores de força diferentes através de um ponto comum, era mais eficaz do que qualquer adestramento, eu definitivamente teria feito isso antes. Um puxa um pouquinho para um lado, o outro para o outro, e assim, equilibrando vontades, parecem caminhar cada vez mais para frente.

Continuei meu caminho pensando maravilhada em como o encontro com a força e a vontade do outro, nos ensinam a dosar melhor nossos próprios passos. Pensei no casamento, em relacionamentos e em qualquer outra ligação de união através de um ponto comum. Agora entendia melhor porque caminhar junto era um exercício que trazia experiências diferentes dos momentos em que caminhamos aparentemente sozinhos. Essa ligação, esse fio, as duas coleiras juntas, como se fossem o lembrete de um propósito em comum – caminhar, seria sempre motivo de aprendizado.

Alguns dizem que o relacionamento é um espelho, onde nos vemos com mais clareza do que o normal. Ouros dizem que é um sonho, uma alegria, um impulso para a melhora, e outros, um pesadelo, e se revoltam cada vez mais com as coleiras que os prendem, com os passos descompassados e divergentes durante o caminho.

Para aqueles primeiros, me parece que compreenderam um pouco mais sobre o sentido de estar junto. Para os últimos, mesmo que não compreendam, me parece que vivenciam o sentido disso a cada tombo e tropeço, em que se veem puxados para uma direção que não querem ou não gostam. Para esses, a ligação também ensina. Até que lhes sobrevenha a vontade de ajustar o passo ou se recusar a caminhar em conjunto.

Para minha felicidade, tenho que reconhecer que essa última opção, pelo menos por enquanto, Juca e Jackie nunca escolheram, recusando-se a passear em conjunto. Por mais que a natureza humana seja completamente diferente da instintiva natureza animal.

Mas até mesmo Juca e Jackie, caninos até o último pêlo, quando esqueciam que estavam caminhando juntos, ao serem puxados, levados e conduzidos pelo movimento do outro, lembravam novamente de perceber e considerar a presença logo ao lado, calibrando o passo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A Medéia e o vendedor de sorvetes

Hoje percebo como foi interessante “passear” por alguns personagens na época em que fazia teatro. Cada vestimenta, cada universo psicológico, cada personagem era sempre um novo convite ao entendimento (ou desentendimento) da natureza humana. Durante aqueles longos cinco anos de friozinho na barriga, maquiagens no camarim e ensaios intermináveis, dois personagens vividos ficaram na memória. A Medéia e o vendedor de sorvetes. E desses dois, posso dizer logo de cara qual deles foi mais fácil de encarar: a Medéia.

Medéia é uma tragédia grega, clássica, densa e absorvente, daquelas cheia de conflitos, cenas impressionantes, com direito a coro grego e tudo mais. De forma bem rasa, ela é um mergulho dramático no que pode haver de mais mal resolvido em um ser humano.

Mas fazer Medéia não foi difícil. A distância que nos separa fez possível interpretar uma Medéia atemporal, que na montagem da Cia. Paidéia, vestia uma roupa de guerra quase medieval, com manto um de lã por baixo, cheia de retalhos amarrados e uma dura couraça (física e metafórica) por cima de tudo isso.

Aquela Medéia, com a qual fui obrigada a me deparar, desenrolava sua tragédia subindo e descendo por uma escada vertical de ferro no fundo do palco. Se segurando ora pelos pés, ora só pelas mãos, enquanto cantava sua dor da traição e anunciava a morte dos próprios filhos. Sim, Medéia, além de estar vestida em uma armadura quente, sob uma espessa cobertura de maquiagem branca, que lhe fazia mais parecer um guerreiro mongol greco-medieval, era uma personagem assassina.

E não foi tão difícil fazê-la. Toda aquela densidade, todas as minucias de um personagem terrível e contraditório, eram possíveis de serem aprendidas e interpretadas. Não tão foi difícil dramatizar, colorir com nuances emocionais, trabalhar, enfeitar o personagem, reconstruir de forma inverídica tantas dores e enganos.

Lógico, não vou mentir que deu um pouco de trabalho, e que no começo não foi nem um pouco tranquilo falar meu texto dentro de um figurino que era quase uma armadura, de ponta cabeça em uma escada, suando embaixo de tanta maquiagem e ainda por cima, dizendo que iria matar os próprios filhos com um bocado de convicção. (Sim, houve momentos em que eu me perguntava o que estava fazendo ali!) Mas foi uma experiência, um desafio, uma vivência importante. Fazer Medéia, depois de algum tempo, me ensinou a comunicar o indizível, em qualquer situação.

Difícil mesmo foi fazer o personagem que viria alguns anos depois: um vendedor de sorvetes. Esse foi, senão o maior, o mais difícil desafio durante todos aqueles anos teatrais.

Sim, um vendedor de sorvetes, que abria a peça entrando em um ônibus com sua geladeira de isopor a tiracolo. E quem disse que eu consegui de primeira? Ou de segunda, ou de terceira? Nada disso. O personagem era simples, natural. Não era abrilhantado por nenhum feito fantástico, não fazia acrobacias em escadas, não resistiu a séculos de história e poeira: pegava ônibus, como eu pegava, e era claro, direto, transparente e espontâneo, sem nenhum artifício. Fazer o vendedor de sorvetes foi para mim a verdadeira tragédia grega.

Para piorar a situação, o tal vendedor era o próprio narrador da peça, que entre um picolé de milho verde e outro, contava (ou deveria contar) a história para sua plateia, com a maciez e a simpatia do trato fácil e amistoso que todos os bons vendedores de ônibus têm.

O vendedor de sorvetes era real, palpável e verdadeiro, poderia se encontrar um em qualquer esquina, desbancando os trejeitos de uma interpretação falseada. (Você não costuma ver Medéias caminhando por aí na rua, costuma?) Como era difícil ser simples.

E como toda catarse teatral há de fazer nos atores, o vendedor de sorvetes, inevitavelmente mudou minha vida, e me fez refletir. Ví como nos tempos de hoje, em muitas esferas da vida social (política, televisão, relações humanas), é fácil ser complicado. Pior ainda, como é fácil usar a complicação e a complexidade para envolver as pessoas.

Hoje, tristemente, se tornou fácil enfeitar e falsear a realidade, emaranhando os outros em meandros engenhosamente construídos, em discursos impressionantes e tortuosos. É fácil fazer cena, tornar as coisas sensacionais, envolvendo e prendendo atenção das pessoas através do espanto, da complexidade e do horroroso. Tornou-se fácil fazer do espetaculoso, e de tudo que choca e impressiona, sinônimo de importância.

É fácil ser e entender Medéia na sociedade atual, pois nos acostumamos com ela. Assim como é fácil ter nossa atenção roubada pelas Medéias da vida cotidiana- vide qualquer novela.

Nenhum personagem principal da maioria dos produtos culturais hoje, parece ser digno desse lugar sem uma boa dose de problemas inacreditavelmente insolúveis, maus bocados e infortúnios. Como diz um amigo, muito da arte aplaudida está virando sinônimo de narrativas neo-sensacionalistas, cheias de negativismo, dos emaranhados da dor, do engano e da perda da condição humana, nas quais o interesse é suscitado pela complexidade de traços horripilantes, em espectadores mortificados, ávidos somente pelo choque sináptico do espanto. A nova arena greco-romana.

E assim como é fácil representar Medéia, é fácil moldar filosofias e teorias intelectuais complexas, cheias de escombros, abstrações e palavrórios rebuscados. Intelectualizar, manipular, racionalizar, construir sentidos, explicar demais, dramatizar, complicar ainda mais nossas complicações. Hoje, é fácil ser difícil, pois para muitos, isso é sinônimo de atenção, respeito, erudição e poder.

Em nossos dias não seria nem um pouco fácil fazer a Medéia vender sorvetes na praia, ela é muito complicada para isso. Talvez pudesse fundar um partido, causar um rebuliço no shopping, fazer uma revolução, mas não, vender sorvetes, definitivamente não. Não faz seu tipo.

Hoje, difícil mesmo é o silêncio. É trabalhar nos bastidores, com ou sem reconhecimento. Difícil é ter poucas e valiosas palavras para dar. A naturalidade do olhar verdadeiro, deixar o afeto amigo exposto, sem medo. Mostrar a imagem de nós mesmos atrás das couraças, não falsear, não querer agradar. Ser espontâneo e natural, enquanto o mundo pede que caminhemos na outra direção. Falar o que sentir, ser simples e viver com simplicidade e tranquilidade, mesmo que pareça desinteressante, inadequado, estranho. Mesmo que não dê votos, não traga audiência, não impressione o chefe. Ter coragem de ser diferente em um mar de personagens teatrais e maquiagens d’alma.

Explicar menos, vivenciar mais, intuir as sutilidades e singelezas, perceber o outro. Diminuir o ritmo e o domínio da mal domada máquina de pensar e produzir juízos em série que é o pensamento. Se livrar do supérfluo, das artificialidades, compreender a sabedoria das experiências da vida... Reconhecer a maestria natural que exala das coisas verdadeiras, feitas com o coração. Vender sorvetes dentro do ônibus.

Difícil é recuperar a simplicidade perdida.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Açúcar

Deolinda tinha poucos anos na época ainda. A soleira da porta e o terraço eram quase que uma coisa só, caminho de passagem dos braços cheios de cana fresca, brecha para um espio do moço ao lado, filho de gente douta e encaminhada. Argelino era assim, magro, astuto, sorridente, sabedor dos negócios da família, cheio de dentes. Ele não mexia em cana, seus negócios eram outros, coisas de papelada. Não sabia ao certo o que era, mas ocupava-lhe certo tempo no casarão empoeirado. E papeladas são coisas de importância. E aquela poeira toda no casarão, decerto não lhe causava asma? As tosses dos ricos eram outras, tinham causas de cansaço, diferente das da gente que se confunde com os pés de cana e apalpa a terra com os pés o dia todo.

Mas Deolinda tinha seu vestido branco para ele reparar ao domingos, e ele lá sempre ao negócios, com o açúcar desfazendo-se no café quente e encorpado, enquanto ela se desfazia em gotas junto à garapa na fervura. Os vapores dali eram os mais doces de toda a propriedade, e o moço Argelino, seguindo o cheiro agudo que dali se expandia, procurou ao redor da moça, e achou de onde vinha seu doce.

E Deolinda não estava de vestido branco naquele dia, mas a brancura dos dentes se mostrava em um sorriso sincero, franco. Ela também tinha dentes, mas não entendia nada de papeladas. O próprio nome tinha riscado no chão apenas uma vez com a ajuda da tia. Sabia como se parecia o desenho de seu nome, e a forma bonita das letras lhe agradava. Como o açúcar da cana tenra, o desenho do nome era bom, sem explicação.

Argelino voltou mudado daquele dia. E então passou a reparar mais na moça. Não tinha dote, nem piano, nem alta costura. Não tinha conversa, mas não era muda como as paredes de retratos de seu casarão. Era Deolinda apenas, uma fração de mulher com olhos acordados e lustrosos. E ali, de dentro dos olhos, via vida a saltar fora. Como o pé de manga entre as canas, ela era diferente.

Das chuvas

Sempre choveu por aqui. As vezes, a água que caia assumia contornos artísticos, granulada como um filme, espessa como as pinceladas de Monet que encharcavam o nenúfar polido pela tarde. As vezes, ousava com meu guarda chuva vermelho, passear pelas poças, evitando a lama com os sapatos de boutique. Mas aquilo foi nos anos vinte, quando em Paris se conhecia mais a noite do que o dia. Mas eu sempre preferi o dia...e não faz mal assim.

Mas você disse que gostava de chuva, e eu também, e nisso o tempo passou. Eu continuo gostando dela, mas de um jeito diferente...o sentimento que ela me traz, de aconchego protegido de seus respingos, pelo lado de dentro da janela, é outro. Não se parece mais com a melancolia do gramofone, nem com os traços esparços de um tempo que já se foi...é agora algo diferente, como o grito infantil, alumbramento de Bandeira, ela vem da entranha das matas, dos rios, das terras virgens encrustradas de sibilos que quase ninguém ouve. Ela agora, a mim transparece o que há por trás de cada gota costurada à mão, fio a fio, como o crochet dos tempos outros, quando subíamos as ladeiras empedradas de Évora, Cascais, Ribeira e Aviz, à volta do colégio. Na chuva os pequenos não iam às aulas e ficavam a fazer troça de seus mestres. O mundo era menor naquela época, os livros mais extensos e empoeirados. Conhecia-se o vizinho ao lado, e a chuva sempre nos dizia “Pois fiquemos mais um pouco à espreita do dia”.

E saudade já não era tanto quanto se pudesse caber numa vida.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Procura-se um amor que goste de viajar

Procura-se um amor que goste de viajar. De preferência com idade madura, aparência simpática e um bom coração. Procura-se um amor, que mesmo sem passaporte, saiba lidar com bagagens – friso, isso é muito importante. Que ele saiba carregar as próprias malas, e que elas não pesem tanto a ponto dele ficar para trás em nossa caminhada, nem sejam tão cheias, a ponto de não terem um pouco de espaço livre para as lembranças que traremos de volta de nossos passeios.

Procura-se um amor que não seja um aventureiro desmedido e me deixe sozinha na mata, enquanto segue encantado os barulhos da floresta. Mas que ele também saiba mudar sua rota no mapa quando for preciso para descobrir o desconhecido.

Procura-se um amor paciente. Pois para viajar é preciso ter paciência, já que os imprevistos estão sempre por perto. Por isso, procura-se um amor com bom humor, que possa dar risada da maioria dos planos que não deram certo e partir para o próximo ponto no mapa, com coragem e disposição. Procura-se um amor que tenha simpatia o suficiente para pedir um taxi em qualquer lugar que não saibamos a língua, nem a diferença entre “bom dia” e “boa noite”. Procura-se um amor que aguente longas viagens sentado, pois eu não aguento, e gostaria muito que ele me ensinasse isso se fosse possível.

Procura-se um amor que não sente sempre ao meu lado no trem, mas que por vezes também aproveite sozinho a vista de sua janelinha, enquanto eu aproveito a minha.

Procura-se um amor que queira experimentar novos sabores, e de vez em quando, se vestir com trajes de outras cores, diferentes daquelas do lugar de que viemos. Pois para mim, isso também é uma forma de ver o mundo. E eu vou gostar de ver o mundo assim de vez em quando. Mas que esse amor não se atrapalhe nem se confunda por causa disso.

Eu não quero um amor de cartão postal, daqueles de fim de filme e pôr-do sol. Porque eu sei que isso existe, e é lindo quando existe. Mas eu sei que isso não é tudo, nem o mais belo que se pode vivenciar em conjunto.

Procura-se um companheiro, sobretudo para pequenas viagens, daquelas de atravessar a rua e seguir ao lado, descobrindo e desbravando os traçados do cotidiano. Aquele que viaja sem precisar sair de casa, esse também me parece ideal. E eu peço desculpas para algum amor não viajante, a quem deixei no aeroporto, entregando minha passagem na mão e desistindo do voo, pois meu destino não era o mesmo que o dele. E mesmo que fosse, nossas escalas tão diferentes dariam motivo atrás de motivo para os desencontros.

Eu não quero um amor a quem possa convencer de seguir meus roteiros cegamente. Nem outro, que me faça ir por seus caminhos sem poder partilhar as decisões durante o trajeto. Só quero um amor que vá, por livre e espontânea vontade para o mesmo lugar que eu, e que por isso embarque comigo. Mas cansei de esperar. Aqui no aeroporto o ar é frio e gelado, e outros ares, de despedidas e de reencontros me fazem melancolia. Além do que, aqui não posso ficar, pois é, como tantas outras coisas, lugar de passagem. Mas como você ainda não apareceu, chegou minha vez de embarcar.

Só posso esperar que ao menos um dia, você, mesmo a pé, de trem ou pelo próximo avião, chegue lá. Pego então meu caderninho de viagens, minha mala e minha maquina fotográfica e penso comigo mesma que afinal, continuará sendo divertido viajar sozinha. Dá próxima vez, quem sabe, coloco um anúncio no jornal...

Sento no avião e não demora a conhecida sensação de que esqueci algo em casa, mas não consigo lembrar o que era! Logo eu, que já tinha viajado tanto...

Então vejo que nessa minha lista de detalhes, esqueci de mencionar o mais importante! Que você, companheiro viajante, assim como eu sou, seja alguém que esteja aprendendo a viajar. E que ainda, se não for pedir muito, traga aquilo que eu deixei em casa e não lembro o que era, mas esqueci de trazer.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Tradição e cultura: transformando o intocável

(Também publicado em http://www.library.com.br/artigosdiversos/tradicao.html)

Tradição e cultura são palavras que se conversam mutuamente e que são empregadas para diferentes usos e com diferentes conotações. Alguns pressupostos contemporâneos fazem de “cultura” algo que pode ser tanto o retrato de uma época ou sociedade, como algum recorte específico do substrato que permeia a vida social. Dizemos que algo é cultural, quando está profundamente enraizado em determinado lugar ou coisa, tanto que se torna possível reconhecer algo característico disso em extratos sutis ou mais objetivos da realidade. Outra conotação da palavra “cultura”, dessa vez mais popular, está mais próxima do sentido da arte e do conhecimento. Fazer um programa cultural ou ir a busca de cultura vai ao encontro da origem da palavra, mais próxima do sentido de um “cultivo de algo”. Nesse sentido ela simpatiza com noções ligadas ao aprimoramento, desenvolvimento e evolução.

Já o termo tradição nos leva a pensar em coisas mais antigas, anteriores às culturas do presente e ligadas a conhecimentos remotos, mas nem por isso menos válidos.

No entanto, existem aspectos agradáveis e outros tantos muito desagradáveis que se escondem tranquilamente sob o título de tradição e cultura. Ora, dirá você, agradável e desagradável são coisas subjetivas. “Não se pode julgar uma cultura na qual não estamos imersos” – cuidado aqui, é muito comum se usar essa constatação para fazer proliferar uma lista argumentos relativistas e vagos. Sobre isso falarei mais adiante.

Antes gostaria de dizer que seria mais saudável de nossa parte um pouco mais de cautela para não cair em chavões intelectuais, que através do carimbo destas duas palavras – tradição e cultura – ignoram algo muito valioso, chamado senso de humanidade. Muitos vão querer discutir exaustivamente a terminologia do termo e novamente flertar com o relativismo, então eu diria apenas que se refere a aquilo que nos torna seres humanos, interiormente. E cada um sinta como bem entender ou conseguir. Pois há hoje nessa compreensão, infelizmente, uma necessidade de esforço.

A cautela que vejo ser necessária é simplesmente a de que, nem tudo que é tradição, conserva em si riqueza do passado. Muitas coisas sim. Nem tudo que é tradicional, merece ser guardado e louvado como algo especial, só por não estar presente na atualidade. Algo que muita gente entende por “coisas que estão se perdendo” e que “merecem ser resgatadas”.

O outro passo cauteloso vai à mesma linha da tradição, mas vale para a cultura, que sob esse largo nome, abre os braços às manifestações que vão muito longe do sentido do valor cultural. Algo que poderia pressupor riqueza e cultivo, no sentido de auto aprimoramento e até mesmo arte ou conhecimento.

Um exemplo é o sacrifício e a tortura de animais para fins religiosos. Assunto que virou projeto de lei para virar um direito legal em certas localidades no Brasil. Aqui a palavra cultura assume contornos mais fixos e intocáveis ainda, pois se liga à outra, chamada religião. E nesse assunto ninguém quer mexer não é mesmo? Sobre isso, vale mencionar uma corajosa declaração de um vereador do RS, Beto Moesch, feita em 2004, “Estamos em pleno século 21, e o mundo inteiro avança na harmonização dos seres vivos. Trata-se de uma decisão lamentável, que vai de encontro ao próprio sentido da religião, de buscar a paz de espírito. É um atraso".

Outro exemplo são antigos rituais dolorosos de iniciação para adolescentes em sociedades tribais, que transgridem sem muito esforço quase todos os direitos humanos. Em matéria publicada na Folha, jovens com acesso à Internet tem se questionado sobre a validade destas práticas:

http://www1.folha.uol.com.br/folhateen/912567-jovens-indios-com-acesso-a-internet-questionam-ritos-dolorosos.shtml

Muita gente diz que grupos culturais mais antigos não devem ter suas tradições tocadas, mas eu pergunto, é direito de alguém, tribo ou sociedade, impedir o livre questionamento e a quebra de padrões culturais de um jovem para si? Até que ponto nossa posição perante a cultura dos outros não influencia na própria cultura dos outros? Se todos fossemos contra barbaridades como essas, algo enfim haveria de se modificar. Daríamos força e apoio, social e político a tantos jovens, docilmente subjugados a certas práticas culturais que vão contra a dignidade humana. Será que com apoio, informação e conhecimento, suas próprias culturas não se modificariam? Uma cultura que muda, evolui e vai além, deixa de ser uma cultura? As dinâmicas da civilização também não vieram de mudanças e transformações culturais necessárias? Quem foi que contou para nós que uma cultura não pode se modificar? Tantas e tantas vezes, lideranças e vozes de opinião, ao deixar de se manifestar a respeito disso, coadunam com estas práticas através do silêncio.

A cultura pode sim ser mexida e modificada, pois ela é viva, e não é algo estático que tantos admiram no museu como algo exótico e que deve ser respeitado, mas ai de nós se estivéssemos imersos naquilo, não é mesmo?

Touradas são outro símbolo da cultura e tradição de um país. Pior, viraram esporte. Afinal, a Espanha não seria a Espanha sem o calor de suas touradas que alimentam uma agressividade e perversão indignas à condição humana. A sensação de mal estar e tristeza sobre isso é latente e constante, não há remédio.

Ora, dirá você, “há o agradável e o desagradável para cada um, e deve se respeitar a individualidade cultural dos grupos e sociedades”. Mas eu pergunto, até onde vão os grupos e sociedades, no limite em que me tocam? Até onde meu vizinho pode praticar coisas que ferem o senso de humanidade de uma coletividade na qual me incluo? Será que “humanidade” também é algo relativo, e assim, num mundo intelectual, abstrato e vazio de significados ficamos a mercê do nada? A individualidade do outro não pode ser em nenhum aspecto examinada e confrontada com valores como ética, saúde e direitos humanos? A lei e o costume, que moldam a cultura e retomam tradições servem à humanidade até que ponto?

Enquanto coletividade que evolui, não nos seria próprio deixar para trás e nunca mais retomar certas práticas e hábitos que tantos escondem maliciosamente sob o signo dito intocável das manifestações culturais e tradicionais? Se eu pudesse fazer alguma pergunta à sociedade, eu perguntaria por que esse medo teimoso em perder certas coisas do passado? Nós mesmos, julgando liberdade desmedida abandonamos sem dó aquilo que achamos desagradável. Por que então querer preservar e repetir passos dados no passado que hoje, só nos impedem de caminhar para o futuro?

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O forno e seus fantasmas

Queimei o dedo no forno semana passada. Esta doendo até agora e ainda não cicatrizou. Mas acho que pior do que ter me queimado, foi ter encontrado uma explicação para a queimadura. Dizia num livro que pessoas que tem acidentes domésticos com queimaduras, refletem um aspecto inconsciente de sua vida na qual ignoram algum perigo e estão literalmente brincando com fogo. E do forno saíram milhões de cismas sobre subjetividades que iam desde a influência do casamento real na sociedade até o porquê dos porquês. Psicólogos nos prestam um grande favor às vezes com suas explicações sobre coisas que nos passam despercebidas, mas sem o apoio da intuição, do bom senso e de uma boa sintonização com o que realmente vale a pena, corremos o risco de fabricar fantasmas com qualquer coisa que nos apareça. E eu que naquele dia só queria tomar café da manha, entre pãezinhos e fantasmas, acabei me esquecendo de curar meu dedo.

Pode ser que eu estivesse ignorando algum aspecto simbólico inconsciente da minha vida colocando a mão no fogo sem saber, mas acho que dessa vez, preferi que ficasse inconsciente mesmo. Além do mais, parece que a teima, a fantasia e a superstição estão sempre próximas e gostam muito de andar juntas por ai. Acho que no fundo no fundo, tudo que eu precisava era a voltar a atenção para mim mesma e para meu dedo machucado. Então fechei o forno com seus fantasmas lá dentro e fui atrás de um band-aid.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Jackie

Jackie é uma cachorrinha terrível. Tem uma personalidade tão forte, que muitas vezes temos de chamar ela pelo nome inteiro, Jaqueline. Que nem criança, que na hora da bronca, não é mais Carol, nem Ca, mais somente Caroline, ela mesma, sem desculpa para ser confundida com outra pessoa.

Pois bem, Jaqueline é uma vira latinha tão danada e incomum, que por isso mesmo acabou nos saindo uma ótima professora. Jaqueline quer minha atenção o tempo todo, e não há nada nesse mundo que a faça parar de pular em cima de mim – em qualquer circunstância. Pede atenção constante, e se não dou, simplesmente morde minha mão, bem ao estilo "Charlie bit my finger"
(vide: http://www.youtube.com/watch?v=_OBlgSz8sSM).

Ela também é muito espivetada, ansiosa e esta sempre falando, na língua dela é claro, mas não para de fazer barulhinhos, uivos e latidos, e outros sons estranhos, que meu pai classifica simplemente como “barulhos muito doidos”.

Jaqueline é exagerada, come demais, esta sempre correndo, tropeçando, caindo, dando cambalhota e se espatifando nas coisas. As vezes ela me lembra eu mesma quando criança. Mas acho que até nisso ela me supera.

Dentre tantas coisas, Jaqueline me ensinou a respeitar o espaço do outro. Ela é muito ciumenta com nosso outro cãozinho, o Juca, um vira lata monástico e introvertido que prefere o silêncio do repouso e se abstém de toda e qualquer confusão. Causar não é com ele, em nenhuma hipótese. Pois bem, Jackie, em sua extrema empolgação, não nos deixa chegar perto do Juca. Rosna, faz cena e late para ele. Jaqueline também não nos deixa pegar nada na mão que não possa ser mordido e possuído exclusivamente por ela, bem longe de qualquer um. É por isso que ela me ensinou a partilhar as coisas. Por mais que eu saiba que minhas coisas a serem partilhadas estão bem além de uma bolinha e alguns tapetinhos. Jackie também não nos deixa abrir gavetas, sem pular dentro, querendo ficar ali. Aliás, não há espaço que ela não possa ocupar, e não foram raras as vezes que ela sentou em cima do Juca (que é bem maior que ela), ou passou por cima dele, enquanto ele, resignado, franzia a testa frente ao incompreensível. Um outro hábito engraçado é quando ela sai correndo por ai e ao colidir com o Juca, dá lhe umas boas latidas e rosnadas, como quem diz: “quem é você que ousa se colocar no meu caminho, grandalhão?”. Jackie realmente é insuperável. Me faz lembrar quantas vezes batemos cegos contra paredes imóveis, julgando que elas se colocam em nosso caminho, interceptando nossa correria.

A última de Jackie foi seu comportamento peculiar na presença de estranhos. Alguém já viu algum cachorro rosnar e pedir carinho ao mesmo tempo, abanando o rabo timidamente? Eu não. Pensando bem, Jackie me lembra mais a raça humana do que sua própria espécie. Quantos de nós já sorrimos por fora para outras pessoas, abanando o rabinho, mas rangendo os dentes de vontade de dizer: “ei, não gosto de estar na sua companhia, você me dá medo e vontade de me defender”. Ou então pior, ficamos na defensiva, cheios de armaduras e com os dentes a mostra, quando tudo que queremos, lá no fundo, é abanar o rabinho e dar e receber carinho.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Em busca da Paciência

Um dia sai correndo atrás da paciência. Em debalde segui suas pistas, pedi carona ao seu rastro que corria pela estrada. E mesmo assim, ela me escapava e escapava. E quanto mais tentava, mais longe das mãos e dos olhos ela, pequena ventania, se apresentava. Subi a montanha mais alta, o cume mais reluzente em ar rarefeito, e ela de novo dançava longe, zombando meu desalento. Embaralhava o foco na linha do horizonte e parecia-me que sumia, acesa, com a pressa decorando-lhe as faces cheias de aurora. Então fui me embora.

Voltei para casa, procurei o aconchego dos recantos d’alma, e mesmo assim ela não veio. Fui mais além, arrumei meus próprios cantos, esquinas e ruas, na espera de que ela por aqui se achegasse e enfim, permanecesse. Varri, tirei a poeira, sacudi e entornei fora gavetas de memórias. Mas ela ia longe, e seu canto era mais eco que resposta.

Um dia, já de volta ao centro que há em toda geometria, fui calmamente à porta, e lá estava ela. Sentada (nada mais peculiar), dizendo que me esperava há dias! Mas como é paciência, os dias lhe passaram leves, enquanto eu a procurava em outras cercanias. Foi quando dei-lhe entrada ao mundo de minhas subjetividades, e pedi que se sentasse – ali, bem onde os papagaios do pensamento retém o trino. E então, muito amiga, ela acomodou-se, e afeiçoada de meu centro, em um longo abraço me fez companhia.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Filosofia do Laxante – desejo e natureza no mundo publicitário.

Dias desses, uma propaganda de laxante no rádio anunciava a feliz possibilidade de um novo estilo de vida aos usuários de seu produto. O produto, laxante, laxativo ou purgante, como preferir, prometia uma verdadeira revolução na vida do homem moderno, que, ao invés de possuir um intestino que funcionasse na hora que bem entendesse, passaria a obedecer fielmente a vontade de seu dono. Emancipado das inconveniências e caprichos de um intestino com vontade própria, talvez o homem moderno pudesse enfim ser livre, controlando até a mais rebelde de suas funções corpóreas e por conseguinte, podendo comer o que bem entendesse a seu bel prazer. Ao utilizar o determinado produto, afinal, não haveria mais intestino sequer que ousasse não funcionar no ritmo anti-rítmico de nossos dias atuais.

Falo em tom de brincadeira apenas para atenuar a estranha sensação que me ocorria ao ouvir a propaganda, embalada pelo tom melódico das vozes de mulheres independentes triunfando sobre a vontade ancestral de seus intestinos. Se morássemos em uma aldeia de sábios chineses, daqueles que possuem um monte de vidrinhos com ervas e muito conhecimento nas palmas das mãos, eles com certeza cairiam para trás ao ouvir alguma coisa desse tipo. Não só velhinhos chineses, mas todo um rol de médicos naturalistas com certeza se espantariam e se espantam com mais uma face incompreensível de nossa industria farmacêutica à medida que os muitos laboratórios, em sua busca por resultados, parecem caminhar na direção oposta daquilo que ainda conseguimos entender por “cura”. Também não estou dizendo que não se possa fazer uso do laxante em casos de necessidade. Mas há algo muito estranho em vender o domínio da vontade sobre os ritmos naturais da vida, incluindo os do corpo, interferindo na complexa dinâmica que rege nossos processos físicos, como sono, liberação hormonal em horas específicas, digestão, produção de enzimas, tudo isso trabalhando coordenadamente para nosso bem estar.

Existe uma concepção geral de que o mal estar físico, a doença e o padecer de ordem emocional exigem imediatamente sua anulação por meio dos remédios, como um inadmissível ponto fora da reta de nossa aparente tranquilidade contemporânea. Esquece-se que hoje, antes de mais nada, o mal estar devia ser motivo de reflexão e trabalho. É preciso compreender causa da doença, não apenas abafar seus efeitos. Um intestino que não funciona direito é em verdade um sinal amoroso de nosso corpo de que algo não vai bem e precisa de conserto. Mais do que conserto, trabalho, trabalho interior, emocional. O sistema que realiza a absorção de nutrientes e limpa o corpo, merecia um tratamento um pouco mais respeitoso de nossa parte. O que será que andamos comendo que anda embrulhando nosso intestino melhor do que pacote de mudança? e o que será que não queremos deixar sair? A medicina psicossomática liga o mal funcionamento do intestino à necessidade de controle, retenção, medo, ansiedade e insegurança. Tias e avós ligam isso a obviedade de nossas dietas, tão desreguladas e pobres. Ricas em sabor (estímulos para papilas que perderam a capacidade de sentir), mas pobres em equilíbrio.

Mas a cultura de nossos dias é audaciosa e nos vende fácil ideias que não fazem parte de nós mesmos, de nossa estrutura e de tudo que há ao nosso redor. E não paramos para pensar nisso. “Interferir para controlar” esse é o lema do homem moldado pela cultura publicitaria, que é antes de mais nada, a cultura da satisfação de desejos que mal sabemos se queremos ter. Alimentação, absorção, digestão, eliminação e decomposição são partes de ritmos maiores, que estão além de nós, e que não conseguiremos controlar ou manipular sem muito ou total prejuízo. Nem os laboratórios que vendem pílulas milagrosas, nem as felizes mulheres donas de seus pobres intestinos, que sobrevivem à despeito de toxinas, seja de ordem orgânica ou emocional, já que esta últimas se convertem facilmente em toxinas orgânicas. Mas afirmações como essas, infelizmente ainda são motivo de espanto e provocam arrepios na cultura publicitária do “faça o que quiser”. Disso tudo, fica a reflexão em ousar passar aquilo que recebemos diariamente da cultura e da sociedade pela peneira da consciência. Também fica a reflexão de que, quando possível, evitar usar laxantes químicos e artificiais trivialmente no dia dia como sugere a propaganda. Eles, além de abafarem algum sinal de nosso corpo que ignoramos, destroem a flora intestinal a longo prazo, roubando-nos um precioso elemento, além de outros tantos, chamado imunidade. Mas isso as companhias não nos contaram, ou se falaram, falaram baixinho, em letras miúdas para ninguém ler e ouvir.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

É certo assim


Na cultura oriental existe uma palavra chamada atarimae, ou tôzen, que significa exatamente o título deste texto: É certo assim.

Estou lendo o livro “A Sabedoria da Natureza” de Roberto Otsu, que tem uma simplicidade tocante. Passando por suas reflexões, encontrei um trecho que fala específicamente sobre a compreensão do estado natural das coisas e do fluxo da vida, com suas mudanças, seu tempo e seus desígnios.

A palavra que o Roberto usa em seu livro para explicar este estado é quididade, um vocábulo que vem da idade média e nomeia simplesmente “aquilo que é”, uma situação, um ser, que existe de determinada maneira, porque é da sua essência ser assim, e não de outra forma. O conceito de entrega seria o sinônimo mais adequado de sua aplicação na vida moderna.

Mas há de se dizer algo. “Entrega” não significa uma isenção da responsabilidade pelos atos, uma total resignação ou um convite aos mandos e desmandos daquela estranha personalidade já citada por aqui, na qual muitos acreditam, o tal do Sr. "Acaso". É apenas a compreensão do comportamento das circunstâncias, frente às nossas decisões. Quando digo compreensão, falo pela metade, admito, porque muitas destas circunstâncias, parecem que estão sempre a serem melhor compreendidas.

Aceitar, não é passar pela vida de cabeça baixa, sem a força das decisões, é apenas, por um momento, ter os olhos do sábio, que espera, cala e observa. Que olha de longe, com mais calma do que paixão e simplesmente entende, que certas coisas acontecem por motivos que quiçá, mais tarde entenderemos, mas que tem motivo e causa para estarem ali, do jeito que estão e como se apresentam a nós. E é necessário que lidemos com elas sem a pressa dos homens de resultado que aparecem nas capas das revistas de negócios, exalando prosperidade.

Tais coisas, que não compreendemos pedem o respiro da não-ação, para depois serem digeridas. São elas que pedem mais uma postura, ou um posicionamento correto de nossa parte, do que a obstinada busca por seus motivos. Mas saiba-se que, tais coisas quando compreendidas em sua essência, trazem o ensinamento em sua melhor e mais duradoura forma.

E um segredo que muitos já descobriram, é que nossas vontades, quereres, sonhos e metas, quando entendem e conversam melhor com a quididade deste fluxo de acontecimentos nos quais estamos imersos, podem passar de meros desejos à verdadeiras realizações de vida.

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