domingo, 17 de outubro de 2010

A menina e o lápis

Lápis na mão como flauta
Folha vazia sem pauta
Claves de letras
Verbalizar
(Sentia o brilho do inverno
Gato preto a olhar de terno)
Era um jeito só seu de cantarolar.

E escrevia pelos muros como quem canta,
Subia pelas paredes
O teto cheio de construções
De palavras aos montes
Que afoitas subiam as pontes
E faziam os seus sermões.

Mas a menina não tocava música
E a flauta dormia acordada
A espreitar a menina deitada
Escrevendo debaixo do cobertor...

Queria saber fazer algo de certo
Como quem beira o verdadeiro.
Queria, mas só chegava perto
Quando palavra e silêncio, a sós,
No branco papel, livre canteiro
Deixavam-na quieta a plantar sua voz.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Poker Face

O que a Lady Gaga tem a ver com os urubus da Bienal? Tudo.

Os urubus finalmente vão sair da Bienal. Para quem não ouviu falar sobre isso, eles faziam parte de uma instalação da 29a Bienal de Arte: ficavam dentro de uma espécie de cativeiro que cercava os bichos em um espaço com enormes caixas de som ligadas.

Já no primeiro dia a obra foi pichada com os dizeres: “liberte os urubus”, e daí pra frente artistas e ambientalistas passaram a rosnar seus direitos inalienáveis mídia afora.

O tema da Bienal deste ano foi arte política. E para mim é quase que um escândalo, palavra que já virou senso comum, falar de política sem ética. Se lembrarmos que estamos no Brasil então...

Vamos combinar, não há nada de ético no caso dos urubus. Que me venham falar de liberdade artística e de expressão, eu não estou nem aí. Uma obra que pretende discutir política, através de uma afirmação e uma constituição substancialmente antiética está fazendo o que? Uma crítica que redunda no vazio, já que seu próprio modo de ser no mundo subverte a discussão.

Veja bem, eu sou ecochata sim, mas estou tentando deixar isso um pouco de lado para tentar adentrar um pouco mais fundo naquele território que louvamos como sendo o da arte: colocado num pedestal inumano e inálcançável, onde qualquer questionamento ao seu status inamovível e soberano, é uma profanação.

A arte é livre, se não não é arte, quem já não ouviu isso? Nós também somos livres. Eu também sou. E na minha pequena e democrática liberdade de expressão, ouso dizer que esse fervor todo por uma arte que está acima das decisões humanas e não abaixo, é um campo aberto de relativismos, no qual o parecer, vale mais, muito mais do que o ser. Nesse momento alguém pode estar querendo arremessar o mictório do Duchamp na minha cabeça, por que foi exatamente isso -desvincular o ser do parecer, que ele a muito custo, consagrou.

Na dita instalação, infelizmente, valia mais o significado artístico socio-filosófico- e-lá-vem-enrolação dos urubus, do que sua própria condição como seres viventes e como patrimônio ambiental brasileiro.

Patrimônio ambiental? sim, urubu, aquele bicho que come carniça e que ninguém gosta. O bicho que faz o papel de lixeiro na natureza. Olhar para ele com desdém é como esquecer que no nosso habitat natural, alguém também tira o lixo da nossa porta, da nossa vista. A diferença é que ninguém come nosso lixo. E se o fizesse, teríamos muito a agradecer a essa pessoa.

Os urubus da Bienal são como a Lady Gaga no VMA, ostentando um vestido feito de carne. Só para lembrar, carne é aquilo que compramos no açougue pra comer. Lady Gaga, do alto de sua febril condição pós moderna justificou a presepada: Queria mostrar que não queria ser tratada como somente mais um pedaço de carne.

Voltando ao mundo real, onde a genialidade do comentário, não passa de um mero comentário, e a fantasia do metafórico vestido de carne não arrouba os corações, há fome. Há fome no mundo e é muita. A ONU se debate ano após ano sobre a terrível condição humana de ter o estômago vazio, dia após dia. Tão vazio como, graças a uma decisão judicial, está agora o viveiro dos urubus, onde não há mais nenhum carne e só o ronco estomacal dos altos falantes ocupa o espaço.

O vestido, assim como os urubus, é quase uma ofensa ao bom senso. Mas é também um elogio para aqueles que se deliciam com o mundo do aparente, onde a realidade paira longínqua, falando em voz baixa com medo de ofender aos altos falantes formadores de opinião.

Veja bem, não tenho nada contra artistas e estilistas, só procuro não acreditar mais em tantas caras e bocas que dissimulam a real situação do jogo...Ouso acreditar que, independente da aparência desejada, as coisas ainda são o que são... Pa pa pa pa pa pa pa pa poker face...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Casamento

Conta a lenda, que na China, em uma longínqua época que o tempo custa a apagar dos corações, em uma velha província para qual o vento ainda indica a direção, vivia um bem aventurado jovem, cuja única preocupação na vida ainda era se casar.

Procurava uma companheira fiel com quem pudesse dividir o resto de seus dias, mas nenhuma das moças da aldeia lhe chamava a atenção. Certo dia então, o jovem foi a procura de um dos sábios da aldeia para lhe pedir um conselho.

Chegando a casa do sábio, este apenas o perguntou: o que procuras? Ao que o jovem respondeu: procuro uma companheira fiel que possa ter ao lado durante todos os dias de minha vida. Sem rodeios, o sábio olhou para o jovem e lhe disse: Sua preocupação tem razão de ser, sua noiva não está aqui, e sim em outra aldeia. Ao norte de nossa aldeia verás um grande lago, caminhe em direção a ele, que muito em breve encontrarás a cidade de sua esposa.

O jovem agradecido, deixou a casa do sábio e partiu. Seguiu rumo ao norte com o coração ansioso e um sorriso nos lábios. Mas por mais que se passassem dias e dias, não via nenhum lago. Até que ao final de muitas luas, retornou cansado e entristecido para sua aldeia.

Desapontado com o conselho mal sucedido, resolveu então procurar outro sábio da aldeia, de menor importância que o primeiro, mas ainda sim tido como um sábio. Ao chegar na presença do ancião, disse-lhe logo que procurava uma companheira fiel com quem pudesse passar todos os dias de sua vida, mas que infelizmente, a moça não se encontrava na aldeia.

O sábio sem exitar disse-lhe que a noiva o aguardava fora das fronteiras da província, e que se ele seguisse rumo ao norte, em pouco tempo avistaria uma montanha. Disse lhe que deveria caminhar em direção à montanha se quisesse encontrar sua fiel companheira para toda a vida.

O jovem reavivou seu ânimo e partiu novamente, certo de que, se não havia visto o lago ao longe, uma montanha seria facilmente reconhecida ao despontar no horizonte. Caminhou durante tanto tempo que até se esquecera dos dias, mas tudo que via ao longe, por mais que aprumasse a visão, eram planícies e arrozais.

Cansado, faminto e com o coração pesado o jovem retornou à sua aldeia, sem compreender o que havia acontecido de errado. Decidiu então procurar um médico, e assim que o encontrou, disse-lhe que temia que sofresse da visão, pois caminhara dias e dias em busca de algo que não conseguia enxergar. O médico examinou os olhos do rapaz e disse que não havia nada de errado com eles. Mas o jovem contou-lhe sua história e insistiu que não poderia ter sido enganado por mais de um sábio da aldeia, e que tudo que buscava era encontrar uma fiel companheira para a vida toda.

O médico, após refletir sobre o acontecido disse lhe então: “Não há nada de errado com sua visão, assim como não há nada de errado com seu coração, que se inflama na busca por outro. Para encontrar sua fiel companheira de todos os dias, no entanto, você deve se casar duas vezes, só assim seu problema estará resolvido”. Dito isto, o médico despediu-se foi embora.

Transtornado, o jovem voltou para casa. E passaram se muitos dias até que encontrasse a paz novamente. E a história terminou.

Vale lembrar que tendo finalmente encontrado a paz, se casou, e apenas com uma mulher, que morava em sua aldeia.

Foi muito feliz até o fim de seus dias e somente depois de muito tempo, reconheceu suas duas fiéis companheiras para a vida toda. E que uma dependia da outra, tanto quanto a outra dependia desta...