sábado, 10 de agosto de 2013

Tempo, o fator sustentável

Acertando os ponteiros para um outro modo de vida

Na equação da sustentabilidade, a questão do tempo tem sido deixada de lado sem que se note sua importância na transição para uma sociedade social e ambientalmente mais equilibrada.

A sustentabilidade, em outras palavras, não significa nada além de reformular processos, estruturas, relações e bens de forma diferente do que foi feito até então. Seu nome também poderia ser reconhecido como um outro modo de “fazer”. Fazer melhor do que até então, fazer direito. Refazer.

Só que para refazer processos e estruturas é necessário um tempo-recurso que, via de regra, não temos sobrando. “Só se eu tivesse todo tempo do mundo faria isso”, quem nunca ouviu?

O tempo do fazer direito as coisas, como se deve ou se deveria (fazer o melhor possível, ainda que não o melhor), inexiste em uma agenda de praticidade e correria. Geramos mais lixo porque não temos tempo de cozinhar e comer o que compramos. Compramos mais porque não temos o tempo de fazer em casa, então compramos feito. Compramos o novo, compramos algo rapidinho porque precisávamos na hora e não tivemos tempo de pensar em uma alternativa (procurar melhor, pedir emprestado, consertar, repensar a necessidade).

Trocamos tempo por coisas compradas e pagas, o tempo todo.

Quanto dinheiro custa o tempo?

E assim a sustentabilidade se vê sem pernas para acontecer: “Não tenho tempo de ir a pé até o trabalho”. “Não tenho tempo de fazer comida em casa, por isso compro pronta”, “Não tenho tempo de estar com meus filhos, então compro coisas que possam entretê-los”, “Não tenho tempo de planejar minhas compras, então compro o primeiro item que encontrar”, “Não tenho tempo de cuidar da reciclagem”.

À primeira vista, o fator que sempre nos parece impedir com mais força a realização de ações sustentáveis é o dinheiro. Sem dinheiro nada feito. Mas só parece, pois o dinheiro é somente um recurso que precisa de um espaço de tempo disponível e adequado para ser utilizado da melhor maneira possível. Alguém sem dinheiro e sem tempo é infinitamente mais pobre que alguém sem dinheiro, mas com tempo para criar, dosar e pensar em alternativas, procurar promoções, fazer em casa, fazer diferente, reinventar. Com tempo disponível, pode se fazer bom uso mesmo de uma quantia modesta de dinheiro.

O inverso também é verdadeiro: sem tempo, todo custo sobe (custo de urgência) e é necessário muito dinheiro para substituir ou comprar tempo escasso. Com tempo podemos fazer e cuidar de uma horta, ter um estilo de vida mais saudável, nutrir relações cooperativas de troca, como conhecer o vizinho que um dia poderá tomar conta dos filhos em uma necessidade, emprestar uma furadeira. Falta nos tempo para planejar melhor o dia-dia e as soluções que exigiriam dinheiro, mas podem dar ótimos resultados com mais criatividade. A sustentabilidade não é outra coisa senão criativa, mas para que qualquer criação surja, o devido tempo é exigido, senão sai mal feito. E se sustentabilidade tem a ver com fazer direito e fazer melhor, pois do mal feito já temos muito, a ausência de tempo aparece aí como um forte impeditivo.

Tempo é um capital, como o dinheiro, pode impedir a realização de ações e atitudes mais sustentáveis pela ausência de sua disponibilidade enquanto recurso. Voltemos ao exemplo da horta, o custo de sua criação e manutenção não é tão caro quanto o tempo disponível para cuidar dela. Ter uma horta e ainda se beneficiar de seus alimentos é barato. Caríssimo está encontrar ou viabilizar o tempo necessário para o seu cuidado.

Então é melhor parar o relógio?

Mas que tipo de tempo é este que falta a nós e à sustentabilidade? Este tempo livre, é um tempo vazio? Inerte ou mágico, que aparecerá de lampejo no meio de uma tarde qualquer?

O horário na agenda entre uma coisa e outra que nos permitiria simplesmente dar mais atenção à vida e a nós mesmos, nossa família, nossa casa, nosso corpo, sempre pode ser útil. O tempo vazio filosófico de algumas culturas orientais ou o ócio (o tempo vazio que gera tédio, alienação, anulação da percepção e dispersão criativa) neste contexto, de uso equilibrado e saudável, ganha outra acepção. É um tempo ativo-meditativo, utilizado com consciência e atenção, mesmo para descanso da mente ou em uma atividade, é um tempo que gera frutos, ou seja, um tempo criador de algo. Quem nunca se deparou com a estranha sensação de desencontro ao ter um dia livre no meio da semana? Dosamos mal e não sabemos o que fazer com nosso tempo livre criativo, que não é vazio, é tempo livre útil, para ação, e pode ser aproveitado nesse sentido.

A falta de tempo em todo lugar

No plano individual é possível observar reflexos ainda mais nítidos da falta de tempo. A insensatez que vem do “falei sem pensar, sem refletir”, o descuido nas relações que vem do “não consegui dar a devida atenção” o torpor que vem de uma “vida corrida, um ritmo alucinante”, a alienação do “não percebi, não tive tempo para isso”, a falta de ação pelo “não tenho tempo”. A nostalgia do “tempo perdido”. O desequilíbrio e doença de um corpo exausto e sobrecarregado do “não parei a semana inteira”. Um corpo que é um relógio e possui seus ritmos e não passa ileso por uma vida sem tempo.

A sustentabilidade, sinônimo de equilíbrio, será a primeira a colapsar onde houver ausência deste precioso recurso. Ela não será vista, nem notada, nem valorizada (e por isso, não monetizada) ou sequer reconhecida por pessoas que sempre tem algo mais importante para fazer.

Sustentabilidade é um bem a longo prazo, ela não faz sentido no imediatismo e num tempo relegado a contrações mínimas e esparsas, pois requer continuidade e constância, ritmo. Ela é sabia, perene, capaz de se sustentar no tempo, por muito tempo, por isso, se diz sustentável.

Ter tempo é criar condições

Nada adianta o recurso monetário, por exemplo, sem as condições adequadas para sua utilização, construídas, amadurecidas e bem elaboradas no tempo, resultando no melhor aproveitamento possível do dinheiro. Quer um exemplo? Na Educação de um país como o nosso, o já escasso recurso financeiro passa mal absorvido por estruturas e processos que carecem de investimento de tempo para serem melhorados, refeitos, trabalhados, polidos, lapidados.

Mas lapidação é uma palavra que soa quase como uma ofensa em uma sociedade pobre de tempo, é preciosismo demais. Luxo lapidar quando somente a pedra bruta já faz tanta falta. “Não podemos ser sustentáveis antes de fazer todas as outras coisas mais importantes primeiro, como acabar com a pobreza e a fome, depois veremos o que fazer”. Me pergunto, diante desse estranho discurso já gasto: a pobreza e fome não tem tudo a ver com a sustentabilidade? Porque não fazer o urgente, já de forma sustentável?

E sobre a necessidade de lapidação, sustentabilidade é fazer o que, senão lapidar
? Azeitar e polir as velhas coisas, para que possam de fato ter melhor valor do que anteriormente? Mais uma pedra bruta lançada à engrenagem, custará mais dinheiro e mais tempo no futuro, e assim iremos...

Respiro, pausa, reflexão, análise, planejamento, avaliação. São todas qualidades urgentes em nossa vida, todas pertencentes à esfera da disponibilidade de tempo. E se sustentabilidade é também uma reorganização de valores, isso só pode resultar em uma reorganização de prioridades. Logo, em uma reorganização do tempo. A sustentabilidade reorganiza o próprio tempo a partir de seus valores intrínsecos. E o que acontece quando tentamos ser sustentáveis usando um reloginho de medidas insustentáveis, regido por valores outros? No mínimo alguns percalços, atrasos e desencontros.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Mercador


Jamil empurrou a porta emperrada da loja, que reagiu metálica, rasgando o chão de azulejo. O dia estava quente e não demoraria a surgir uma velha sensação que se anunciava.

Percorreu os tapetes empilhados com as pálpebras semicerradas, tique seu e estranho traço genealógico. A luz agora adentrava a pequena esquina da Ladeira Constituição. Avivava as cores fortes e destacadas que abrilhantavam os arabescos dos fios sintéticos dos tapetes à venda. Folhagens em azul anil apareciam na tapeçaria logo abaixo do papel que anunciava a quantia modesta a ser oferecida pelo produto. Podia-se fazer em três, até quatro vezes, pensava ele.

Devia negociar, como fazia seu tio quando ainda trabalhava na loja. Mas sem sua presença, algo que lhe escapava fazia-se ausente. Não sabia o que, mas sua falta retirava algo dali, e em seu íntimo, quando algum cliente antigo adentrava a loja, desejoso do sorriso conhecido de seu tio, Jamil sentia-se menor. Via-se contrair por dentro, escondendo o olhar nos cantos abarrotados de mercadoria.

O calor aumentava e a balbúrdia que tomava conta da 25 de Março lhe lembrava onde estava.

As funcionárias haviam chegado enquanto ele esquadrinhava os dez metros quadrados repletos de pilhas de tapetes e almofadas sintéticas que se alternavam, em displicente disposição. Ergueu um tapete para fora da porta, e enquanto batia a poeira que se levantava dos fios, lembrava do deserto.

Havia visto um filme na noite anterior, e a lembrança de cenas do deserto, deslocadas, tomavam sem aviso o rumo de seus pensamentos. Era um filme de guerrilha, mas o deserto lhe trazia paz, e calor.

O calor que tomava conta da rua, vinha do sol, do asfalto e das pessoas em movimento. O calor dos desertos era diferente. Faz os homens se sentirem pequenos, parte de um universo maior, de areia e sombra, no qual a pele acolhia a brisa carinhosamente, como um presente. O deserto tem um jeito estranho de abraçar...

A poeira do tapete flutuava no ar. Aqui as pessoas fugiam do calor, e se pudessem, apagariam o sol do céu... O que estava dizendo? Nunca havia estado no deserto...

Voltou a si. E pensou consigo mesmo, não havia gostado daquele filme afinal. Meio dia já se esgotava, podia ter vendido mais, se apenas tentasse negociar... mas não, não era seu tio. E gostava dele, mas não era sua a inata habilidade em vender três ou até quatro tapetes de uma vez só. Pensou nas palmeiras avistadas ao longe por cima de um traço no horizonte arenoso, era como se seu peito fosse soltar-se diante de tanta beleza e esperança.  

Entram alguns clientes. Jamil atende, prestativo e calmo. O calor agora parecia chegar ao seu ponto máximo enquanto os ventiladores de teto zuniam monotonamente, lembrando o canto ecoante de tribos que nunca vira. Tribos enterradas na areia fria como formigas geometricamente pregadas em volta do fogo, em terras que nunca visitara.

Pisa no degrau da porta uma mulher de cabelos castanhos, aparenta cerca de quarenta anos. Deve estar procurando um tapete para sua casa, pensa Jamil. Ela abre um sorriso franco e pergunta o preço dos tapetes encostados à beira da calçada. Traz em volta do pescoço um lenço, graciosamente disposto sobre o colo e que lhe conferia algo de diferente. A mulher examina os tapetes.

É preciso sentir a amplidão do deserto para aprender a confiar nos passos que levam ao futuro. É preciso saber o que há além do que não se pode distinguir ao longe, na linha trêmula do horizonte que aferventa o ar... Jamil dissimula os pensamentos longínquos e fora de hora e lugar.

Observa os movimentos da cliente, sua maneira de portar as mãos. O movimento destas mãos, não de outras. A lentidão do vento morno, resto de tempestade de areia, silvando entre dedos, a pele das palmas finamente cravadas pelas linhas do destino.

Então ela lhe diz com ternura no rosto e uma leve risada enquanto percorre um tapete com minuciosa atenção. “Este aqui é uma beleza, mas não deve ter vindo do deserto para chegar até aqui, não é mesmo?”

Não foi mais possível conter-lhe a sensação da brisa que subia naquele momento e refrescava, revolvendo com delicadeza a duna-cidade ao entardecer. A brisa não era quente, nem fria, elevava-se volátil e perfumada pelo cheiro de uma caravana distante, emoldurada pelo tecido uniforme feito de cristais de areia fina, que se estendiam até o infinito...

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sábado, 20 de abril de 2013

A cultura das coisas

"Os processos, a engenharia e a técnica não são o problema. O problema são as pessoas, que se unem para falar sobre coisas. Se deitam pensando em coisas. Se refastelam na falsa sensação de êxito de uma sociedade cujos processos materiais estão em pleno funcionamento. O homem se afastou do homem para buscar coisas, para ler sobre coisas, para trabalhar pelas coisas, para amar através das coisas".


Processos, eficiência, capacidade, inovação. Atributos tecnológicos passam às relações humanas com a mesma facilidade que Bauman anunciara sobre as relações de consumo e o território das relações pessoais –parco limite. 

Os olhos crescem aos gadgets, traquitanas, apps. É mais fácil falar sobre configurações do que sobre sentimentos. As pessoas se unem, juntas se divertem, para falar sobre configurações.

O tempo que desponta faz da técnica a expressão de uma cultura. Mas a técnica é tão antiga quanto aquele pessimismo da tecnologia-robótica e do homem virtualizado, que não se realizou. Não se realizou como imaginávamos, pois nem nisso somos bons –imaginação. O homem virtualizado não é filosófico, não existe em um espaço de bytes matemáticos de estranhas convulsões acadêmicas. Ele é um nó, um homem pasmo, um homem bobo que se diverte e rí das engrenagens que o rodeiam mas esquece, quase que confortavelmente de si mesmo. Sua preocupação está nas coisas que podem atrair sua atenção, um novo método, uma nova invenção. Um jeito novo de empilhar garrafas e transitar dados, tudo que não é vivo lhe é caro e próximo.

Os processos, a engenharia e a técnica fizeram uma civilização, são a mimésis sempre imperfeita de uma natureza simples. Mas os processos, a engenharia e a técnica não são o problema. O problema são as pessoas, que se unem para falar sobre coisas. Se deitam pensando em coisas. Se refastelam na falsa sensação de êxito de uma sociedade cujos processos materiais estão em pleno funcionamento. O homem se afastou do homem para buscar coisas, para ler sobre coisas, para trabalhar pelas coisas, para amar através das coisas que o ser amado ostenta e representa. A excitação sobre o novo aparato é como um sonrisal cadente, que espuma e brinda a novidade de tudo aquilo que pode ser construído, dominado, manipulado. Das sensações vivas, das impressões profundas, pouco-se sabe. A mídia e as conversas passam pelas coisas com incrível facilidade e nos enamoramos delas. Se as possuímos, triunfo.

Uma vez o homem se afastou da religião corrompida para encontrar o sentido em si mesmo, nas humanidades, no esclarecimento, na ideia iluminada em tempo de dogma-breu. Mas o homem retornado ao homem não pode evitar a barbárie. Certo é que o homem da religião institucionalizada também promovia a barbárie.

Pergunte ao homem sobre coisas, ela é sua nova crença, esculpida no panteão da participação no mercado. Participar do mercado é participar da própria vida, centro da estrutura de significado contemporâneo, valor maior que orienta o modo como os jornalistas e as pessoa ditas interessantes falam. Sua crença não é mais capaz de esconder nas palavras. 

Agora o homem se volta para as coisas, sua ordem é das empresas, dos produtos, sua linha guia é produzir algo para vender e se manter vivo. Só que a vida muitas vezes se esvai nestes entre-momentos de compra, venda e produção acelerada. Produção sem vontade nem coração. Para constar, a idade e a cultura das coisas também não pode evitar a barbárie.
Parece que o sentido, a essência do cotidiano se perdeu em um momento específico ao longo da história. Para não adentrar neste território dizemos que a barbárie e a falta de sentido são a essência do homem. Mas o homem lobo do homem é uma grande desculpa que nos contaram, para justificar todos os nossos erros. Afinal, não há nada a melhorar em homem que é lobo do homem, por natureza corrompido. 

Como a sentença de uma igreja secular, as epístolas intelectuais guiam toda uma sociedade cada vez mais para fora de si mesma e em direção às luzes das coisas construídas e perecíveis.

Voltemos ao instante em que se deu a ruptura.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O futuro dos filhos dos outros

"Enquanto a sustentabilidade for tratada como o supérfluo e nossas próprias palavras não refletirem essa consciência viva e real, continuaremos a pensar nela somente como algo importante para o futuro de nossos filhos, enquanto de soslaio, um leão amazônico nos espreita, mais perto do que nunca."

Comunicar para a sustentabilidade não é uma tarefa fácil.

Enquanto alguns não aguentam mais ouvir a palavra sustentabilidade, que prolifera em todos os lugares, produtos e discursos, outros ainda ficam receosos diante do conceito, quando não o ignoram. Uma outra boa parte, não raro, relaciona sem muito jeito sustentabilidade à ecologia, trazendo ao imaginário imagens como árvores, araras, um leão rugindo ameaçadoramente e a floresta Amazônica. Um leão amazônico.

O problema esta no fato de que os leões estão muito longe e nós, e a Amazônia ainda é, para muitos um Eldorado de lendas, estilizado como um souvenir.

Na visão mais comum do conceito de sustentabilidade para o grande público, as plantas do jardim, a Amazônia, a vida selvagem e os leões, parecem estar mais próximos da palavra sustentabilidade do que as enchentes nas ruas, a poluição dos automóveis, o lixo doméstico e as relações de trabalho. Ninguém vê sustentabilidade nas filas dos hospitais, nos morros das favelas, nos pássaros vendidos em gaiolas. Ninguém vê nas calçadas cimentadas e impermeáveis, no mandato dos governantes, no escapamento do carro, nas notícias do rádio que anunciam com alarme que o Brasil não está crescendo quanto deveria. Poucos vêem a sustentabilidade ali, exatamente onde ela está, e mais próxima impossível.

Diante da tarefa de comunicar para a sustentabilidade, o pobre leão amazônico e as imagens e conceitos populares que temos do conceito de sustentabilidade não dão conta do recado, principalmente em tempos de crise socioambiental.

Não culpo ninguém, a sustentabilidade é mesmo uma palavra recente, foi citada pela primeira vez no século dezoito, mas passou a ser usada da forma como é hoje só no ano em que eu nasci. A sustentabilidade tem a idade do universo, mas a palavra tem praticamente a minha idade. O problema é que ela está muito mais próxima de mim e de todos, do que imaginamos. Ela anda na nossa cola, qualquer dia olharemos para trás e levaremos um susto: ela sempre esteve lá o tempo todo, e seu rastro é o nosso também.

É por isso que temos que comunicar para a sustentabilidade, e fazer isso melhor do que temos feito até agora. O imaginário popular se apropria da ideia socioambiental ainda com muita distância, sem saber que a sustentabilidade está para as pessoas e para natureza em igual medida. Canso de ver vozes de opinião repetindo que estão pensando nas pessoas, e depois na sustentabilidade, como se ela fosse perfumaria, jardinagem, item supérfluo na cultura organizacional e urbana, por exemplo. Nas ideias, no discurso comum, a sustentabilidade ainda está relegada aos quintais e parques, ela não é urgente, e sim acessório. E é justamente para essas vozes (e para os que as ouvem) que temos que comunicar em dobro sobre a sustentabilidade, pois divulgam uma ideia dicotômica e errada, que reforça a separação entre homem e natureza fundida no antigo ideário do progresso megalomaníaco e faminto.

É difícil demonstrar como a sustentabilidade está junto de nós, por isso precisamos trazê-la mais para perto. Extrapolar as áreas verdes e colocar ela em nossa mesa, em nosso consumo. Temos que dividir nossa cultura com ela, nosso desejos e angústias mais profundas, pois a sustentabilidade está lá também, nas dobras de nosso comportamento.

Mas será que estamos fazendo isso do jeito certo?

Em uma época de tantas contradições, duvido sempre dos discursos demasiado fáceis, mascados como chiclete, gastos, usados e com pouco poder de transformação. As palavras tem que movimentar, mover algo. E se necessário, causar o desconforto característico de uma colisão, quando se deparam com um ambiente por demais rígido e paralisado. Nem que seja o desconforto de um grão de areia dentro de uma ostra, as palavras devem construir e transformar, essa é sua função.

Da boca para fora
Faça um teste: saia às ruas e pergunte às pessoas por que a sustentabilidade é importante.

Duvido não encontrar uma menção sequer ao "futuro dos nossos filhos". O futuro dos nosso filhos está sempre lá, nas frases das multidões, indefinido, pairando na esfera etérea de um temor misturado a um tempo nunca presente e nebuloso.

Repare, no entanto, que algumas ideias  podem se esconder nessa fala singular com terrível evidência: que só conseguimos pensar no planeta por aquilo que tange ao nosso (des)conforto mais pessoal e próximo. A imagem mental e emocional que nos mobiliza para o bem da humanidade e do meio ambiente é a de nossos bebês, e não a da própria natureza e população em risco. Não há algo de estranho ou ingênuo nisso?

Também neste pensamento, sem saber replicamos uma velha mentalidade utilitarista da natureza: temos que cuidar da natureza para nossos filhos usarem no futuro, de modo passivo, cuidar para alguém poder usar com tranquilidade. Poucos falam "temos que cuidar para nossos filhos continuarem cuidando" ou "temos que ensinar nossos filhos a cuidarem quando chegar a vez deles de cuidarem". Algo muito sutil, mas perceptível.

Outro ponto fundamental da questão é que sim, a sustentabilidade é sem dúvida algo também para o futuro, para as próximas gerações, representada por nossos filhos. Mas sua importância passa antes e urgentemente pelo agora. Nesta busca, desafio encontrar alguém que admita que a sustentabilidade é algo importante para o presente, para os pais dos nossos filhos. Ao falar da sustentabilidade como um problema que deve ser resolvido por causa de uma situação futura, podemos sem querer, afirmar que a questão não é tão urgente ou que quase não existe no presente. Por trás da sustentabilidade para nossos filhos, pode se esconder a crença fácil de que hoje está tudo bem, o problema mesmo só virá no futuro, quando o tempo de nossos filhos (e entenda-se aqui, netos, sobrinhos e etc.) chegar.

Da boca para dentro
Façamos então um exercício diferente, saia às ruas, mas não pergunte às pessoas sobre sustentabilidade. Pergunte sobre o futuro de seus filhos, o que as pessoas estão fazendo hoje, praticamente, para garantir o futuro de seus filhos.

Espante-se quando a maioria das respostas caminhar rumo a um modo de proteção e sobrevivência individual, frente às adversidades já esperadas. (Espere, mas não estava tudo bem no presente?). Proteções e garantias que já se anunciam para o futuro dos filhos: a condição da educação diferenciada, a garantia ao sistema de saúde particular, o acesso aos bens de consumo de ponta, às belezas naturais intocadas, disputadas em algum paraíso internacional. Itens praticamente descolados da previsão de um futuro sustentável, qualidade de vida e bem estar coletivo, que esperávamos para o mundo em que nossos filhos iriam viver. Mas, peraí, o futuro dos nossos filhos não tinha tudo a ver com sustentabilidade quando perguntávamos sobre a importância da mesma?

Quando perguntamos sobre o futuro dos nossos filhos, nos vemos já esperando e preparando-os para um futuro completamente insustentável. Será que nisso não pressentimos o desfecho do atual de um presente já comprometido? Será que no fundo estamos agindo no presente para a sustentabilidade do futuro dos filhos ou nos preparando para a insustentabilidade, de forma paliativa, resignada, privada e egoísta?

Olhe bem: a primeira pergunta, sobre a importância da sustentabilidade, evoca imagens de um belo planeta esperando para ser usado por nossos filhos em um tempo muito distante, enquanto que a pergunta concreta sobre a relação do presente com o futuro da próxima geração traz a tona preocupações bem mais sérias e imagens ameaçadoras. A contradição examinada nestas falas nos mostra que nem mesmo sabemos no que acreditamos, e a distância entre os discursos e crenças se confundem em um estranho jogo de esperança, medo, autoengano e ilusão. Tudo isso salpicado de frases clichês e porções midiáticas de fantasia sobre a realidade.

O leão amazônico espera calmamente
Desconfio que ninguém quer estar aqui quando o tempo da sustentabilidade (aquele do futuro dos nossos filhos) chegar.

Os pais se preparam para um mundo mais desigual, mais insustentável, carente e com disputa de recursos naturais: terra, água, comida e energia elétrica para seus filhos. Desconfio ousadamente, (admito), que o futuro econômico, social e cultural que os pais preparam e no qual depositam sua tranquilidade é na verdade um seguro contra as coisas que estão deixando de fazer hoje. Um seguro para protegê-los dos problemas de insustentabilidade que já temos hoje. Mas poucos conseguem imaginar que a busca da sustentabilidade tem tudo a ver com estes mesmos problemas que querem evitar para os filhos, dos quais buscam protegê-los no futuro. Parece óbvio, mas não é.

Por outro lado, se nosso agora refletisse a ação para uma melhora mais sustentável, talvez estivéssemos mais tranquilos e despreocupados em relação ao futuro, mas não é assim que o parece.

Enquanto a sustentabilidade for tratada como o supérfluo e nossas próprias palavras não refletirem essa consciência viva e real, continuaremos a pensar nela somente como algo importante para o futuro de nossos filhos, enquanto de soslaio, um leão amazônico nos espreita, mais perto do que nunca. O leão amazônico é a própria fantasia da natureza que dizemos proteger, sem conhecer a fundo sua real dimensão, suas interações e até mesmo sua veracidade. O leão amazônico é a imagem mental que nos levará diretamente para sua cova, confrontando os clichês e slogans publicitários sobre sustentabilidade com a gravidade do momento e da realidade. Por enquanto, ele ruge.

O futuro dos filhos de todo mundo
É por isso que ao comunicar para a sustentabilidade, temos que fazer um revolução em nossa própria maneira de pensar, sentir, avaliar, comunicar e construir ideias e conceitos. Temos que estar mais acordados, ao menos para perceber os absurdos que saem de nossas próprias bocas, isso é tarefa nossa.

Penso que talvez fosse mais sensato relacionar a sustentabilidade, não só com o futuro, mas principalmente com o presente, e não só com nossos filhos, mas com os filhos dos outros também. Com a coletividade, de modo mais altruísta, humano e realista e atual. Mesmo diante do estranhamento, amar os filhos dos outros como amamos os nossos, talvez converse melhor com a ideia de sustentabilidade do que temos tanto falado e feito até agora. Ser sustentável só por causa do futuro dos nossos filhos, no fundo no fundo, pode não ser tão sustentável assim. Se há um bom motivo pelo qual a sustentabilidade, na profundidade de seu conceito, é importante, é por causa do presente dos filhos dos outros.

Comunicar deve mover algo. Façamos outras perguntas, cheguemos a outras respostas, da superficialidade na fala e na reflexão não passaremos um passo em direção à sustentabilidade.

Por Caroline Derschner Videira.

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domingo, 4 de novembro de 2012

Sandy e o medo das mudanças climáticas


O furacão Sandy passou pelos Estados Unidos, mas deixou parte de seu rastro em toda a comunidade global, que, perplexa, assiste a fragilidade dos sistemas e estruturas nas quais sempre depositou grande parte de sua tranquilidade e segurança.

Em uma sociedade desacostumada com a ausência de controle sobre quase todas as circunstâncias, a passagem do furacão desperta um sentimento ímpar, que destoa da correria cotidiana como uma grande pausa, um silêncio e uma incerteza íntima, que incomoda até mesmo as consciências mais endurecidas.

Surpreende, no entanto, que as vozes que se propagam nos meios de informação, principalmente aqueles de grande escala, reagiram com excessiva cautela à associação do fenômeno com as mudanças climáticas. Surpreende que a negativa a esta consideração, tenha tomado quase tanto espaço quanto a discussão da relação entre Sandy e o agravamento das mudanças climáticas. É possível tentar esconder o tema do aquecimento global das pautas e manchetes, mas não é possível esconder o medo e assombro que se revela nestas próprias tentativas. As pessoas têm medo.

Medo das mudanças climáticas? Do imprevisível na natureza? Da sujeição a um sistema do qual não temos controle? Creio que sim, mas não completamente. O primeiro medo, que desatado se revela aos olhos, é de outra natureza.

O primeiro medo vem lá do fundo, da sala escondida no edifício do espírito de nosso tempo, indicando que “não temos razão”. Pois se ficar comprovado, que sim, o aquecimento global e as mudanças climáticas estão em curso, toda uma legião, principalmente de lideranças, verá estampada em suas faces, a vergonha indelével de ter errado e persistido no erro.

Tanto os formadores de opinião, quanto parte da opinião pública, temem, pavorosamente, terem feito tudo errado, o tempo todo.

É ingenuidade atribuir aos grupos petrolíferos, por exemplo, o topo de uma cadeia de responsabilidade. Está tudo errado, estamos todos errados. Pois as mudanças climáticas não provêm de fonte única, elas são resultado de uma intrincada rede de efeitos em desequilíbrio, de múltiplas contribuições.

O medo que vem primeiro, mesmo inconsciente, parece vir do reconhecimento de que deveríamos estar fazendo tudo diametralmente diferente do que estamos fazendo agora, nossos governos, nossas indústrias, nosso transporte, nossas vidas.  O medo não é somente em relação a constatação do aquecimento global, o medo que vem antes é um receio generalizado sobre nossas ações, em todos os âmbitos.

Uma vez reconhecido este medo, outros medos, provavelmente ligados à urgência da situação, virão. Mas nem mesmo ainda este primeiro medo conseguimos reconhecer com clareza, pois estamos cegos pelos medos do ego, que saltam à frente e obstruem a percepção da realidade. O medo de estar errado é um deles.

Todos os líderes internacionais estão plenamente cientes do comportamento climático e das catástrofes naturais, validadas pela comunidade científica. Não é novidade, não há motivo para espanto. E o argumento central dos céticos das mudanças climáticas, que afirma que Sandy poderia ter ocorrido mesmo em condições normais, é apenas uma construção de linguagem, silogismo fechado em si mesmo. Um malabarismo racional que qualquer bom advogado é capaz de fazer com maestria para provar qualquer coisa. Tudo poderia acontecer mesmo sem o aquecimento global, a terra poderia mover suas placas tectônicas, um meteoro poderia cair, as espécies poderiam entrar em extinção sem o aquecimento global e as mudanças climáticas. Sandy poderia ter ocorrido fora de qualquer cenário com relação ao aquecimento global, mas acontece que ele não ocorreu. Estamos em uma conjuntura de mudanças climáticas, só por isso o furacão Sandy, uma ocorrência climática, não poderia ser analisado fora dela. O fenômeno que vivemos agora, algo extremamente peculiar na história da humanidade, é uma variável impossível de se isolar na análise do fato.

A bandeira do “senão”, neste caso, é tecida com panos quentes. Pelo senão, todo o improvável se sustenta e todos os argumentos são postos em contradição. Há quem compre o argumento e se orgulhe em sair repetindo por aí os clichês e bordões que inflamam a arena em que se debatem os prós e contras da grande mídia. Isso é um esporte. Mas as mudanças climáticas são alheias às nossas distrações, elas prosseguem objetivamente.

Enquanto isso, uma legião de apavorados mal sabe se usa as mãos para fechar os próprios olhos, ou os olhos dos outros.

Para encerrar, um vídeo sem nenhuma palavra, para conversar em uma outra linguagem sobre aquilo que ninguém quer falar:




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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cinquenta tons de Carminha

O que se fala. Por que se fala. Por que se ouve.

Em um passado, sim, muito distante, o silêncio ainda era uma qualidade. Símbolo de honradez, honestidade e exatidão, falar pouco era a medida da sabedoria. Em sociedades que falavam tão e somente o necessário e útil havia pouco espaço para a mentira, a fofoca e a corrupção. Hoje o silêncio, quando não incômodo, soa estranho. Falar sobre outra coisa, que não o que se fala, parece fora de propósito. E não se falar sobre o que se fala em todo lugar —melhor nem falar sobre isso.


Não é a toa que em alguns mosteiros e retiros existe o voto de silêncio, como um esquisito remédio a ser tomado de vez em quando, com toda razão. O silêncio é o exercício ideal para se chegar à essência das coisas, ao seu núcleo principal e inalterado. Através dele recordamos que sentir e ser vêm primeiro do que mostrar e demonstrar algo ao outro. Hoje em dia, invertemos este fluxo. Pois se parássemos para sentir... Ah se parássemos.

Nesse imenso falatório no qual submerjo todos os dias ao desbravar a rotina cotidiana, Carminha e Cinquenta Tons de Cinza me perseguem. Tento fugir, mas quando não estão no discurso uníssono das trivialidades, eles me encontram em carne, osso, páginas e pixels. No metrô, logo de manhã, Carminha, Tufão e Nina já estão nos televisores, em pleno veneno, quando mal descolei as pálpebras da noite anterior. No horário político, a propaganda eleitoral de um candidato a prefeito de minha cidade, cita as palavrinhas mágicas: Tufão, Carminha e Nina, e assim ganha o Brasil. Na manhã seguinte, Arnaldo Jabor, na voz do rádio, pergunta quem será punido ao final do julgamento do mensalão, Carminha ou José Dirceu? Carminha compete com o horário político, com o julgamento do mensalão. Sem dúvida sairá vitoriosa, sua audiência sobre eles é garantida.

Com os enésimos exemplares de Cinquenta Tons de Cinza é um pouco pior. Como eles não dependem de televisores, se espalham como gremlins pela cidade, e em qualquer lugar onde eu esteja. Outro dia uma moça, de olhos arregalados, lia o livro enquanto atravessava a faixa de pedestres em plena Avenida Paulista. No mundo em que eu vivo, a sociedade se enamorou facilmente pelos lazeres perversos destes dois produtos culturais. Ambos são a expressão legítima de um mesmo querer: quanto pior, melhor. Ambos celebram e atestam o gosto pela dor, seja na trama ou na própria experiência que proporcionam ao público, que encontra no sofrimento um objeto de fruição.

E Cinquenta Tons de Cinza está na capa da revista de maior circulação do Brasil. Um assunto de importância Nacional. Sem surpresa, políticos foram convidados a darem seu depoimento sobre a obra. Carminha está no horário eleitoral, Cinquenta Tons de Cinza na boca da Ministra do Meio Ambiente (algo tão assombroso de se colocar em uma pauta de revista que chego a duvidar de minha sanidade neste momento). Cinquenta Tons de Cinza e Carminha são atores políticos. Estão na boca dos políticos. Ocupam espaços políticos.

Não demora muito para que comunicadores, jornalistas e todos nós repitamos um pouco mais dessa ladainha que nos cerca, afoitos por assuntos fáceis, aceitação social e venda de capas de revista. Mais e mais, falamos sobre o inútil, comunicamos o vulgar. Reafirmamos um presente vazio. Tijolo por tijolo, moldamos um futuro influenciado pelos fenômenos culturais do hoje. Se todos os best-sellers e sucessos de audiência são retrato de uma época e a linha guia para uma próxima, por que pensar que com estes será diferente? Através de um fenômeno, é como se disséssemos coletivamente, “É disso que gostamos, é isso que queremos ser”. Um belo futuro nos aguarda, repleto de Carminhas e do decadente e vazio personagem de Cinquenta Tons de Cinza, que conversa conosco enquanto Carminha conversa com nossos filhos toda noite pela televisão. Careta? Conservadora? Me chamem do que for, quero Carminha e Mr. Grey ou qualquer pessoa parecida com eles bem longe de mim. Talvez tenha que evitar muita gente no futuro, concluo. No invisível que a cultura deixa no ar, moldamos o visível. Sempre.

E mesmo a mim, que não vejo a novela, não escaparei desta construção. Ao contrário. Hoje à noite ao fechar os olhos, de forma bem visível e teimosa, Carminha mais uma vez estará lá, como um retrato do dia, grudada em minha retina. E de lá, mais uma vez, com a paciência que nem sei de onde tiro, tentarei lhe arrancar em busca de mais amor. Por favor.

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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Arremate


(Continuação de "Alinhavo")

Era seu primeiro dia na casa, mas ali em meio a caixas fechadas e paredes em branco, Sara vivenciava um entre-espaço até então nunca experimentado. Era ela mesma em período de espera.

Caixas fechadas como uma respiração suspensa no ar, que aguarda um novo expirar. Ansiedade talvez permeava seus sentimentos, mas ela calmamente apenas aguardava com os olhos postos nos cantos, cheios da mudança que havia tomado todos os espaços.

Teria ela também mudado para acompanhar a mudança de casa?

Sara era só intervalo.

Entre um arremate e uma nova costura há sempre uma pausa, necessária, refrescante, bem vinda. E ela estava ali, de agulha pousada sobre os joelhos, com os dedos salpicados de pontadas resquícios que o tempo junta e guarda nas mãos de quem coze o cotidiano.

A casinha trazia novos ares, nova fazenda se desdobrando como o melhor futuro possível. Abriu as janelas, que seria dali para frente? O ar entrava e mesclava o aroma de jardim travesso e agridoce com a poeira arrebatada pelo chão. O ar volvia o sol e o céu e Sara observava as partículas de tamanho visível que se exibiam para a luz.

Chega de devaneios.

Muita coisa para limpar, rotinas para virar do avesso, ali tudo teria de ser diferente, a começar pelo espaço, bem menor que seu apartamento. As caixas trazidas denunciavam todos os excessos na vida de Sara e de igual maneira a falta de vida onde coubesse tudo aquilo: cursos de espanhol, aparelhos de ginástica, aulas de bordado, livros de finanças. Quantas Saras poderiam sequer vivenciar metade daquilo com tranquilidade e ainda ter tempo de cerrar os olhos no meio de uma tarde fria em uma poltrona macia?

Tinha fome, mas a geladeira estava vazia, mal a tinha ligado na tomada. E o gás, os armários, toda uma casa aguardava as diretrizes de Sara sobre o desconhecido. E cada escolha era um suplício, definição de uma identidade —ao menos na publicidade era assim: chocolate: carência afetiva; pizza para um: olho maior que a boca; saladinha: utopia demais para o momento. Sara olhou em volta, nem sabia por onde começar.

Mas isso era bom sinal havia lhe dito um amigo, guru das horas aflitas: “Se não sabe por onde começar, ótimo, sinal de que há muitas boas opções disponíveis” dizia ele. Mas Sara estava cansada dos excessos, até de opções. Agora preferiria um script, quadrado, rigoroso e infalível: “O que fazer quando mudar de casa”, ou melhor ainda, “O que fazer primeiro quando mudar de casa”. Seriam ótimos títulos de livro.

De volta à vida real, melhor fazer supermercado. Sabe se lá quantos dias passaria isolada, quiçá afastada da sociedade, em meio a tantas caixas de memórias, brincava ela em pensamento.

Enquanto imaginava o que trazer para casa em uma lista rabiscada de canto de mesa, lembrava das costuras, como sempre.

No arremate, que antes de dar por finda a linha, torna para trás mais um pouco, como quem diz que ali, num tiquinho do que já se foi, algo permanece e com isso está seguro, Sara se encaixava perfeitamente. Ela também estava em arremate desde que comprara a casinha, mas faltava-lhe a voltinha, aquela que retrocede alguns passos para lembrar do que se foi, e do que continuará levando quando mais à frente trocar de linha.

Enfrentou a mudança abarrotada a sua frente com olhos altivos e coragem súbita. Melhor começar pelo passado. Pelo que se foi e ainda é, e pelo que agora não será mais.

Espiou duas caixas vazias, repositórios ideais do que ficaria consigo e do que seguiria em frente. Começar pelo recomeço parecia a melhor e mais sensata alternativa dentre todas as outras. Se há excesso de opções, reduzir ao “sim” ou “não” era tudo o que precisava naquele momento.

*Este texto é continuação do texto "Alinhavo"



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