quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Chuva de Verão

A água já se fazia por tardar. Havia esperado na janela a olhar para o céu, sem saber decerto o que aguardava. Sentia-lhe a inquietação segurar o passo rumo ao espetáculo que o trovão anunciava.

A brisa agitada serena por um instante, e o espaço de um suspiro prevê a chegada. A terra silenciosa abre os braços. Cai a primeira gota.

E se nós, como a terra, nos deixamos inundar, logo surpreende em nós o fluxo, transbordando o interior, regando as sementes. Pede lugar, abre passagem, limpa e cura, como dádiva a quem fora da prisão se aventura.

Nutre, porque o que limpa é também o que alimenta. E então, logo nos lembramos do que é feita toda a sede, emergindo vigorosamente do rio do esquecimento.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A porta

É possível que o caminho levemente demarcado trace espelho ao longe? Visitado pelo constante e breve fugaz vislumbre, de que, entre duas sendas abre-se, meramente, imperceptivelmente, e quase que ao descuido, uma porta?

É quando sinto o cheiro e a textura dos dias que virão.. Me calo. A porta se fecha e o caminho ao lado segreda que só se faz caminho o chão pisado.

Volto à trilha dos dias conhecidos, em compasso, a respiração visita o traço, e a linha certa indica o alvo, acaricia a alma, ao que me acalmo.

De volta ao rumo, procuro a cadência da perfeição que há em todas as coisas. Simplicidade, humildade, respeito, verdade e amor, como sons suaves cantam baixinho para quem se põe a ouvir.

É noite e os grilos em orquestra acalentam o corpo, convidando ao sono infantil, leve, sem medo nem hesitação, apenas presença.

Mal o sorriso vem e permanece, abre-se novamente a porta, e por ela entrevejo, tão claro quanto seria possível traduzir em letras, a presença do que está longe, mas que de tão semelhante, anda sempre às voltas.

Então pergunto: o caminho que vejo ao lado, decerto será meu também? Ao que o silêncio, fiel conselheiro, responde: só será, na medida em que já é. E de caminho trilhado em caminho trilhado, põe se calmamente à frente o que aguardava tranquilo ao lado.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O que você vai fazer dia 27?

O que você vai fazer dia 27? Ou melhor, o que você não vai fazer dia 27?

Porque muitas pessoas ao redor do mundo já decidiram o que não vão fazer nesse dia. Não vão comprar nada, fazendo a parte delas no “Dia Mundial Sem Compras”. Então eu vou te fazer um convite: se juntar a nós e experimentar o seu dia sem compras da melhor maneira possível.

Um dia sem compras pode não ser muito, e efetivamente, não teremos grandes resultados em termos de impacto ambiental deixando de consumir durante um dia, e voltando a girar a roda do consumo no dia seguinte. Então por que um dia sem compras? Um dia sem compras serve para, entre outras coisas, fazer valer uma postura no mundo. Dar uma breve sacudida na economia, lembrando-a de que no final das contas, ela ainda depende da gente, e que temos sim, algum poder sobre seu rumo.

Essa sacudida, esperamos, se fará sentir por todos aqueles que não acreditam que um dia, consumidores mais conscientes tenham o direito de influenciar nos desígnios bilionários da economia. Nós, com essa breve sacudida, mostraremos que com muita persistência, novos hábitos podem ganhar força e mudar coisas que até então, ninguém nunca diria ser possível mudar.

Essa mudança trilha o caminho de um bicho chamado sustentabilidade. E não podemos levar o “susto da sustentabilidade” quando ouvimos falar nisso. É possível passar um ou vários dias sem compras, e com um pouco de criatividade, readaptar nosso cotidiano, substituindo rotinas insustentáveis por outras, mais saudáveis, mais gostosas e prazerosas.

Passar um dia sem compras significa imaginar soluções fora do eixo do consumo como forma de inclusão social e entretenimento. Passar um dia sem compras significa encontrar os amigos em casa, pedir para cada um trazer o que tem de bom na dispensa e na geladeira e fazer um piquenique inusitado. Significa aproveitar a casa, cuidar do jardim, e sair para dar aquele passeio com nossos companheiros de quatro patas.

Falando em companhia, pode ser uma ótima oportunidade para dar mais atenção pras pessoas que atropelamos na correria do dia-dia, conversar, alegrar, confortar. Fazer um passeio de bicicleta, brincar com os filhos, fazer pão, ouvir bons cd’s, encher a casa de música...
E aí, já teve algumas ideias? O que você vai fazer dia 27?

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Resgate

Hoje busquei meu coração na praça,
E agora trato dele com carinho.
Pra ele não se perder mais por ai,
Que nem balão de gás
Solto pelo caminho.

domingo, 17 de outubro de 2010

A menina e o lápis

Lápis na mão como flauta
Folha vazia sem pauta
Claves de letras
Verbalizar
(Sentia o brilho do inverno
Gato preto a olhar de terno)
Era um jeito só seu de cantarolar.

E escrevia pelos muros como quem canta,
Subia pelas paredes
O teto cheio de construções
De palavras aos montes
Que afoitas subiam as pontes
E faziam os seus sermões.

Mas a menina não tocava música
E a flauta dormia acordada
A espreitar a menina deitada
Escrevendo debaixo do cobertor...

Queria saber fazer algo de certo
Como quem beira o verdadeiro.
Queria, mas só chegava perto
Quando palavra e silêncio, a sós,
No branco papel, livre canteiro
Deixavam-na quieta a plantar sua voz.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Poker Face

O que a Lady Gaga tem a ver com os urubus da Bienal? Tudo.

Os urubus finalmente vão sair da Bienal. Para quem não ouviu falar sobre isso, eles faziam parte de uma instalação da 29a Bienal de Arte: ficavam dentro de uma espécie de cativeiro que cercava os bichos em um espaço com enormes caixas de som ligadas.

Já no primeiro dia a obra foi pichada com os dizeres: “liberte os urubus”, e daí pra frente artistas e ambientalistas passaram a rosnar seus direitos inalienáveis mídia afora.

O tema da Bienal deste ano foi arte política. E para mim é quase que um escândalo, palavra que já virou senso comum, falar de política sem ética. Se lembrarmos que estamos no Brasil então...

Vamos combinar, não há nada de ético no caso dos urubus. Que me venham falar de liberdade artística e de expressão, eu não estou nem aí. Uma obra que pretende discutir política, através de uma afirmação e uma constituição substancialmente antiética está fazendo o que? Uma crítica que redunda no vazio, já que seu próprio modo de ser no mundo subverte a discussão.

Veja bem, eu sou ecochata sim, mas estou tentando deixar isso um pouco de lado para tentar adentrar um pouco mais fundo naquele território que louvamos como sendo o da arte: colocado num pedestal inumano e inálcançável, onde qualquer questionamento ao seu status inamovível e soberano, é uma profanação.

A arte é livre, se não não é arte, quem já não ouviu isso? Nós também somos livres. Eu também sou. E na minha pequena e democrática liberdade de expressão, ouso dizer que esse fervor todo por uma arte que está acima das decisões humanas e não abaixo, é um campo aberto de relativismos, no qual o parecer, vale mais, muito mais do que o ser. Nesse momento alguém pode estar querendo arremessar o mictório do Duchamp na minha cabeça, por que foi exatamente isso -desvincular o ser do parecer, que ele a muito custo, consagrou.

Na dita instalação, infelizmente, valia mais o significado artístico socio-filosófico- e-lá-vem-enrolação dos urubus, do que sua própria condição como seres viventes e como patrimônio ambiental brasileiro.

Patrimônio ambiental? sim, urubu, aquele bicho que come carniça e que ninguém gosta. O bicho que faz o papel de lixeiro na natureza. Olhar para ele com desdém é como esquecer que no nosso habitat natural, alguém também tira o lixo da nossa porta, da nossa vista. A diferença é que ninguém come nosso lixo. E se o fizesse, teríamos muito a agradecer a essa pessoa.

Os urubus da Bienal são como a Lady Gaga no VMA, ostentando um vestido feito de carne. Só para lembrar, carne é aquilo que compramos no açougue pra comer. Lady Gaga, do alto de sua febril condição pós moderna justificou a presepada: Queria mostrar que não queria ser tratada como somente mais um pedaço de carne.

Voltando ao mundo real, onde a genialidade do comentário, não passa de um mero comentário, e a fantasia do metafórico vestido de carne não arrouba os corações, há fome. Há fome no mundo e é muita. A ONU se debate ano após ano sobre a terrível condição humana de ter o estômago vazio, dia após dia. Tão vazio como, graças a uma decisão judicial, está agora o viveiro dos urubus, onde não há mais nenhum carne e só o ronco estomacal dos altos falantes ocupa o espaço.

O vestido, assim como os urubus, é quase uma ofensa ao bom senso. Mas é também um elogio para aqueles que se deliciam com o mundo do aparente, onde a realidade paira longínqua, falando em voz baixa com medo de ofender aos altos falantes formadores de opinião.

Veja bem, não tenho nada contra artistas e estilistas, só procuro não acreditar mais em tantas caras e bocas que dissimulam a real situação do jogo...Ouso acreditar que, independente da aparência desejada, as coisas ainda são o que são... Pa pa pa pa pa pa pa pa poker face...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Casamento

Conta a lenda, que na China, em uma longínqua época que o tempo custa a apagar dos corações, em uma velha província para qual o vento ainda indica a direção, vivia um bem aventurado jovem, cuja única preocupação na vida ainda era se casar.

Procurava uma companheira fiel com quem pudesse dividir o resto de seus dias, mas nenhuma das moças da aldeia lhe chamava a atenção. Certo dia então, o jovem foi a procura de um dos sábios da aldeia para lhe pedir um conselho.

Chegando a casa do sábio, este apenas o perguntou: o que procuras? Ao que o jovem respondeu: procuro uma companheira fiel que possa ter ao lado durante todos os dias de minha vida. Sem rodeios, o sábio olhou para o jovem e lhe disse: Sua preocupação tem razão de ser, sua noiva não está aqui, e sim em outra aldeia. Ao norte de nossa aldeia verás um grande lago, caminhe em direção a ele, que muito em breve encontrarás a cidade de sua esposa.

O jovem agradecido, deixou a casa do sábio e partiu. Seguiu rumo ao norte com o coração ansioso e um sorriso nos lábios. Mas por mais que se passassem dias e dias, não via nenhum lago. Até que ao final de muitas luas, retornou cansado e entristecido para sua aldeia.

Desapontado com o conselho mal sucedido, resolveu então procurar outro sábio da aldeia, de menor importância que o primeiro, mas ainda sim tido como um sábio. Ao chegar na presença do ancião, disse-lhe logo que procurava uma companheira fiel com quem pudesse passar todos os dias de sua vida, mas que infelizmente, a moça não se encontrava na aldeia.

O sábio sem exitar disse-lhe que a noiva o aguardava fora das fronteiras da província, e que se ele seguisse rumo ao norte, em pouco tempo avistaria uma montanha. Disse lhe que deveria caminhar em direção à montanha se quisesse encontrar sua fiel companheira para toda a vida.

O jovem reavivou seu ânimo e partiu novamente, certo de que, se não havia visto o lago ao longe, uma montanha seria facilmente reconhecida ao despontar no horizonte. Caminhou durante tanto tempo que até se esquecera dos dias, mas tudo que via ao longe, por mais que aprumasse a visão, eram planícies e arrozais.

Cansado, faminto e com o coração pesado o jovem retornou à sua aldeia, sem compreender o que havia acontecido de errado. Decidiu então procurar um médico, e assim que o encontrou, disse-lhe que temia que sofresse da visão, pois caminhara dias e dias em busca de algo que não conseguia enxergar. O médico examinou os olhos do rapaz e disse que não havia nada de errado com eles. Mas o jovem contou-lhe sua história e insistiu que não poderia ter sido enganado por mais de um sábio da aldeia, e que tudo que buscava era encontrar uma fiel companheira para a vida toda.

O médico, após refletir sobre o acontecido disse lhe então: “Não há nada de errado com sua visão, assim como não há nada de errado com seu coração, que se inflama na busca por outro. Para encontrar sua fiel companheira de todos os dias, no entanto, você deve se casar duas vezes, só assim seu problema estará resolvido”. Dito isto, o médico despediu-se foi embora.

Transtornado, o jovem voltou para casa. E passaram se muitos dias até que encontrasse a paz novamente. E a história terminou.

Vale lembrar que tendo finalmente encontrado a paz, se casou, e apenas com uma mulher, que morava em sua aldeia.

Foi muito feliz até o fim de seus dias e somente depois de muito tempo, reconheceu suas duas fiéis companheiras para a vida toda. E que uma dependia da outra, tanto quanto a outra dependia desta...

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Sentindo o dia

Claro claríssimo, um poço d’água com água dentro.
Misturam se sol e o frio no orvalho rebento.
De tantas coisas lidas, as que ficaram, tento.

Assim foram os últimos dias vividos
Trazendo no pulso o amanhã acolhido.

Palavra é tinta, atómo arranjado.
E palavra é mais, éter em desenho
que com delicadeza e véu
Funde-se em papel no céu que tenho.

A rima é pouca a dar conta do dia.
Do mês nem se fala, tamanha alegria.
Varre-te daqui tristeza perplexa
Retira teu gancho travado na testa.

Vai te embora, uiva, murcha e sai.
Que no meu poço, posso, e a água não turva
Lá no meu poço, peço, cala muda
Que eu já não te quero mais.

Caroline Derschner

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Voa!

A estrada está livre. Ouço a gaita ao fundo anunciando dias melhores. Voa, que a alma não é coisa que se segure. Estar disponível para a vida, como o velhinho que espera uma carona na bifurcação da estrada. E as bagagens que trago?

Estão comigo o tempo todo, mas por hora deixei-as em casa, e a leveza do agora é feita disso também.

Os dias acenam felizes, porque descobriram que a liberdade não se faz de fugas por cima das pernas e dos sapatos gastos – certo, disso também partilha a liberdade. Mas há quem corra a vida toda sem saber que é pra dentro, e não pra fora que se encontra liberdade.

Meu gato dorme ao pé da porta. Sua tranquilidade é a minha. Os políticos vociferam na sala, a máquina de fazer imagens turva o silêncio, mas no fundo, tudo ficará bem.

Há de ficar, porque essa é a ordem natural das coisas. Há de se ajudar todos aqueles que trabalham para o bem, e a felicidade corre ao encalço.

domingo, 11 de julho de 2010

Sinergia

O que é? Da onde vem? Tem gente que dúvida. Outros que só acreditam vendo, e alguns só aceitam viver nela, com ela e através dela. Tem gente que chama de coincidência, outros de integração com uma realidade maior, que parece estar um pouco, ou muito acima deste mundinho desbotado e descontente, ajudando a mexer os pauzinhos e fazendo ligações.

Ligações, talvez essa seja uma das chaves para a compreensão do que é a sinergia. “Estava lá aquele dia, na hora e no lugar certo...”.
Mas, e se, toda hora e todo lugar, forem a hora e o lugar certo? “Impossível”, dirá você! Tem dias que tanta coisa podia estar acontecendo, e nada acontece.

A realidade vista com olhos míopes é um palco difuso, onde atribuímos muito, ou quase tudo ao Sr. Acaso. Ele mesmo, aquele que sempre ouvimos falar, mas que nunca ninguém viu, ele é quem garante a tranquilidade de tanta gente. No fim das contas, a única frase que ele sabe dizer é: nada disso importa, pare de refletir e vá fazer outra coisa mais interessante.

Eu também já tinha ouvido falar nele, cheguei até a acreditar que por trás da rotina do dia-dia, nada de novo acontecia. Até que pouco a pouco, lentamente, começava a ver, bem a minha frente, um princípio bem básico, ensinado na escola, chamado ação e reação. Todo movimento suscita uma reação. Estamos sempre em movimento, sempre agindo, então não há como não haver reação. Mais do que isso, a reação a um movimento não pode ser simplesmente aleatória, ela é, em igual medida, sempre atrelada ao movimento que a gerou.

Uma pedra atirada num lago, não decide ao acaso se vai desenhar muitos ou nenhum círculo na água. Seu movimento e intensidade é único, e gera somente uma resposta compatível com seu estímulo. Assim são nossas ações. Somos milhares de pedras, desenhando círculos n’água. Muitas vezes, nossos círculos tocam os de outras pedras em movimento. Conheço pessoas que não param de gerar grandes ondas, pro bem e pro mal, e também não é obra do acaso que elas atinjam tanta gente.

Pare pra pensar, o que te atinge diariamente? As pessoas com que você convive, por que convive com elas, e não com outras? Por que teve um bom dia ou um péssimo dia? Sinergia tem a ver com isso, e com muito mais, por ora, vamos dizer apenas que para enxergá-la, é preciso primeiramente, reconhecê-la...

terça-feira, 8 de junho de 2010

Saudade de mim

Você já sentiu saudade de você mesmo?

A primeira vez isso pode parecer um pouco egoísta, mas hoje, tudo que eu mais queria era estar comigo. Me encontrar no meio de tantos compromissos, me puxar pelo ombro, e dizer, “calma lá, aonde você vai correndo assim? Espera um pouco, que tal se a gente batesse um papo?”. Fato é que descuidei de mim, derrepente, me esqueci. E agora que não me acho mais, tento encontrar aquela pessoa que atende pelo meu nome.

Não sei como seria, se eu fosse atrás de mim mesma e me encontrasse hoje, em um assento do metrô, de cara amarrada, digerindo mil problemas. Olhando de fora para mim mesma, hoje, definitivamente, não me reconheceria.

Sair atrás de si não deve ser encarado como algo tão estranho assim. Como o Ultraje a Rigor mesmo disse: Há quanto tempo eu vinha me procurando / Quanto tempo faz, já nem lembro mais / Sempre correndo atrás de mim feito um louco / Tentando sair desse meu sufoco / Eu era tudo que eu podia querer / Era tão simples e eu custei pra aprender / Daqui pra frente nova vida eu terei / Sempre a meu lado bem feliz eu serei.

Mas eis que, para me achar, preciso saber quem sou, senão como irei me reconhecer na multidão? principalmente em dias cinzentos, nos quais mal nos reconhecemos e custamos a querer até a própria companhia. Então, afim de me encontrar, pergunto sem muita saída, quem sou eu?

Se você acredita ser normal como eu, também já deve ter se perguntado quem é você. (Pequena pausa para a livre manifestação de controvérsias). Você, só você, o que sente, o que quer, independente do dia da semana, da companhia, do humor, dos hormônios e do horóscopo. Examinar o “só eu” pode ser um pouco difícil- não existimos sem o todo e sem o tudo. Porém, até o tudo e o todo se mostram diversos quando olhados por diferentes “eu sou”, capazes de perceber e reconhecer matizes singulares de luz, cor, sombra e forma projetadas sobre um mesmo objeto visto de diferentes ângulos.

“Quem sou eu” soa ecoando nas horas largas: no trânsito, na espera, na noite e no intervalo que há entre todas as coisas. Mas “quem sou eu” é sempre uma pergunta de respostas fugidias. Eu sou? Cheiro de alecrim, companhia da minha vó, meu cão em silêncio me olhando, a mão apertando a da pessoa querida, o chá que quase ferve no fogão, mas distingue a medida do sabor entre a existência ou não de bolhas precipitantes e fugazes. Conseguir falar um pouco de inglês, extrair doses de felicidade do simples ato devotado de escrever, arrumando e desarrumando palavras. Olhar as plantas e as pedras. Admirar pessoas, desvendar mistérios, esparramar todo jornal só para ler algumas linhas que sugerem: me diga o que lês que te direi....

Assistir o vai e vem dos aeroportos como uma criança deslumbrada. Dançar o que o corpo pede, e não o que pede a cabeça e a norma. Pensar a em algo ao mesmo tempo que um amigo querido. Se comunicar por olhares. Imaginar histórias de épocas que já se foram. Sentir cheiro de lareira. Eu sou vontade de ver o campo com céu azul. De ouvir os grilos e as cigarras. De dias quentes e manhãs que amadurecem aos poucos.

De fato, tudo isso é bastante poético, mas não responde, em letras claras e distintas quem sou eu. Mas indica um caminho.

Através destes fragmentos, o chá fervendo, o céu azul iluminado, a mão dada, e as tantas coisas não dizíveis, perpassa um imenso sentimento de saudade, sussurrando de forma inaudita quem sou. “Sou”, é algo maior do que fui - pressinto. É algo da natureza do “sendo”. Ou mais precisamente, do “serei sendo”, do quero e preciso ser, aquilo que sei que sou, quando simplesmente sou.

O ápice de se saber “sendo”, é inteiro, completo e repleto da vivência plena e profunda do tempo presente. Algo em que a eternidade perdura através de cada segundo. Nessas horas, é como se assumíssemos todo o nosso ser com mais propriedade.
N ’algo disso, que beira o infinito, sobrevém por um instante sinestésico o reconhecimento, na forma de “sou”, preenchendo tudo com espanto e o contentamento. Um cheiro, uma cor, um som, uma imagem, podem subitamente nos conectar a algo que partilha do que somos integralmente, trazendo às idéias organizadas uma sensação pouco compreensível, de um deleite profundo, que diz “sou agora”.

Esse sussurro, resposta da pergunta aqui repetida tantas vezes, “quem sou eu?”, ora se confunde com o vento e se perde, indicando um rumo ao longe, oásis onde veramente somos, sem mais nem menos, sem falta ou excesso -apenas medida.

Lá, construídos e ao mesmo tempo, em construção, esperamos, de forma serena e forte, naturalmente embebidos por tudo aquilo que vagamente pressentimos que somos quando não estamos sendo, e passamos a saber no momento em que somos. Não sei ao certo indicar tal direção, só sei que ao me voltar para lá, que é mais caminho do que lugar, sou capaz de estar uma passo mais próximo do reconhecimento de mim mesma. Mesmo em dias cinzentos.

domingo, 25 de abril de 2010

La vie en green

Existem pessoas que são diferentes. Elas são verdes. Assim como os alienígenas, que também são verdes. De fato, é bastante comum que as pessoas verdes às vezes sejam consideradas extraterrestres pelas pessoas que não são verdes.

Alienígenas são, na maioria das vezes, seres verdes que vem de outro mundo e atacam o planeta Terra. Iguais as pessoas que não são verdes fazem. A única diferença entre os alienígenas e as pessoas não verdes, é que os alienígenas vem, destroem a Terra e depois voltam para seu planeta, enquanto que as pessoas não verdes destroem o planeta Terra para depois não terem para onde ir. O que em uma escala de bom senso e inteligência coloca as pessoas não verdes abaixo dos alienígenas.

No planeta terra, junto com as pessoas não verdes, vivem as pessoas verdes, que fazem de tudo para que o planeta, assim como elas e os alienígenas, fique mais verde. Mas as pessoas não verdes, das quais fazem parte alguns políticos, empresários, cientistas e formadores de opinião, continuam não dando atenção para o planeta e insistindo que as catástrofes ambientais que estão acontecendo nada tem de extraordinário ou incomum. Além de dizer também que a causa verde não é de primeira importância, eles continuam dizendo que nós, pessoas verdes somos seres de outro planeta.

De fato nós somos. Pertencemos a outro planeta onde as águas são limpas, o ar é saudável e o clima equilibrado. E nós, de alguma forma sabemos que é a este planeta que já pertencemos um dia, e não a esse, que nos é estranho.

Acontece que chegará o dia em muitas pessoas levantarão suas antenas alienígenas para o que está acontecendo no mundo e se tornarão verdes também. Nesse dia, nós, pessoas verdes, seremos tantas que pouco a pouco substituiremos as pessoas não verdes em seus cargos de poder. Incluindo os fazendeiros que desmatam a Amazônia para (mal)criar gado e as pessoas que pescam baleias para fazer sushi – que em uma escala, está acima do filé amazônico por emitir menos CO2.

Pois bem, nesse dia, as pessoas não verdes, que em uma escala de bom senso e inteligência já estão abaixo dos alienígenas, ficarão também abaixo das pessoas verdes. E por emitirem mais CO2 do que o sushi de baleia e o filé amazônico, vão estar no último lugar da lista, até que por fim, mal lembraremos delas.

E quando, no futuro, contarmos pros nossos filhos que um dia existiram pessoas não verdes que destruíam o próprio planeta, eles não vão acreditar e perguntarão se isso realmente existiu. Assim como hoje eles nos perguntam se alienígenas existem.

Responderemos então que eles acreditem no que quiserem, mas que entre alienígenas e pessoas não verdes, eles prefiram os alienígenas, que ao menos são verdes como nós e por isso são mais deste planeta do que as pessoas não verdes, seres definitivamente de outro mundo.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Cinema, aspirinas e Lula.

Até o Lobão perguntou pra Marina Silva o que ela achava do curioso projeto de levar o filme do Lula Brasil afora este ano, principalmente para lugares onde não existem cinemas, e algumas vezes nem televisão.

Sim, até o Lobão perguntou, porque essa é uma pergunta natural de se fazer quando sabemos que sob o pretexto da baixa bilheteria atingida pelo filme e pela falta de acessibilidade à sétima arte em comunidades mais pobres, o “filho do Brasil” deve varar estradas em caminhões e aportar em lugares onde quiçá energia elétrica é coisa tão rara quanto o conhecimento político a respeito de nosso país.

É lógico que a proposta vem atrelada a um projeto que promete colocar outros filmes em cartaz, mas isso não é suficiente para abafar o peso de um Cine-Lula a todo vapor em pleno ano eleitoral. As sessões a preços populares em torno de 2 reais que os filmes terão nos fazem lembrar aqueles festivais relâmpago de filmes nacionais, que, mesmo em prol de uma democratização do cinema nunca saíram em caravana, como fará a história cujo nome reverbera como uma frase de campanha.

A pergunta que paira no ar não se refere ao filme ou às motivações que levaram a fazê-lo. Não é errado fazer um filme de viés político e mostrá-lo por aí, de jeito nenhum. A própria Marina Silva lembrou que muitas vezes a fronteira que separa a arte do engajamento político é tênue e difícil de ser delineada. Mas eu nunca ouvi falar de projetos de “resgate” a belíssimos filmes brasileiros que foram assistidos em salas repletas de poltronas vazias.

Se quisermos, por exemplo, tentar dimensionar um pouco do poder da imagem da televisão no Brasil, podemos começar lembrando da Copa de 70, quando muitas pessoas viam pela primeira vez a imagem da minúscula bola na tela dar vida à sala de estar. E agora, muitas das pessoas que ainda hoje não tem por hábito a imagem da TV ou do cinema serão apresentadas ao líder que nasce e cresce diante dos olhos em um tamanho de homem bem maior do que as polegadas de todos os homens que nascem e crescem por aí.

É por isso que, inevitavelmente, me lembrei do filme “Cinema, aspirinas e urubus”, que conta a história de uma tela em movimento pelos confins televisivamente virgens do Brasil nos anos 40, passando filmes em preto e branco sobre a descoberta e os benefícios da aspirina e vendendo o milagroso remédio até para quem não sabia exatamente o que era uma dor de cabeça.

Talvez por isso a pergunta feita pelo Lobão e por outros mais, espero eu, aponte para a suspeita de que o filho do Brasil conversando com seus camaradas ao vivo e a cores em ano eleitoral, seja um espetáculo mal dosado para os que tem pouca ou nenhuma vacina contra a vivacidade de imagens tão reais quanto a pálida realidade.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Reencantamento

Há a necessidade de reencantamento por que há desencanto. Há desencanto aqui e ali. Relações encantadoras se desmancham, cidades e lugares cheios de história tem sua magia dissolvida, pessoas vão amargando aos poucos junto com seus dissabores cotidianos, pensamentos e assuntos encantadores caem em desuso e casamentos vão azedando como leite esquecido na geladeira.

Nos desencantamos em relação ao país, à justica, ao emprego em que estamos. Somos seres desencantados em relação aos sonhos que tínhamos na época em que éramos mais animados do que hoje, e que todas as possibilidades eram de fato, possibilidades possíves, pleonásmicamente falando. Já fomos mais animados, mais vivos e mais otimistas em relação a tanta coisa. Reanimar, em termos médicos, é aquilo que fazem conosco quando estamos num estado de franca proximidade com a morte.

O que é ser alguém verdadeiramente animado então? É ser utópico? romântico? saudosista? E estar encantado? Seria o encanto um estado pueril de delírio próximo à fuga da realidade? ou um estado de felicidade forçada e anormal? O encantamento só pertence aos chamados sonhadores, levianos, irreais e frágeis? Ou seria aquilo que começou nos anos 60 e deixou tudo azul e todo mundo nu? Não. Encantamento não é isso.

Encantamento é uma habilidade, uma sensatez e uma capacidade muito mais louvável, realista e magnífica do que imaginam os desencantados. Encantamento é sutil, é sorrir por dentro, com nossa respiração, ossos e músculos. Ser encantado é o prolongamento diário da experiência de estar verdadeiramente encantado com algo. É reverenciar o bom, o belo, o verdadeiro e o nobre. É agradecer por estar vivo, é respeitar a natureza por tudo que ela é apesar do que resta dela, é louvar boas ações e reconhecer boas pessoas. É ter a coragem de sair de casa todos os dias como quem procura pérolas na lama e quando passa por estas pérolas, as reconhece, respeita e cuida, com vigor, paciência e amor inabaláveis.

Tenho amigos que fazem “reencantamento ambiental”, tarefa notável, feita de ações simples como botar um punhado de terra na mão de uma criança e mostrar que o que ela come vem daí. Sim, as coisas não nascem no supermercado. Reencantar seres desencantados, mornos e embotados é uma tarefa árdua e necessária. Necessária porque ser encantado com o que existe de bom é a única condição para que o bem continue existindo. O poço do desencanto aguarda ao lado. As placas do conformismo, da alienação, da fuga pela fruição do prazer, do status quo, da normalidade e do menor esforço indicam o caminho deste poço. Mas é difícil ver estas placas quando há miopia.

Desencantamento é a imagem de um homem sozinho e mal humorado que cortou a árvore de seu quintal por causa da sujeira das folhas. É a imagem de um funcionário público empurrando causas importantes pra dentro de uma gaveta e saindo da mesa para ligar para a namorada. É chegar em um lugar novo e ser recebido sem nenhum calor. É dar um animal de presente para o filho e se desfazer dele como um brinquedo que perdeu a graça.

Vemos o encanto pela vida escapar pelos dedos. Mas só fizemos da vida algo sem encanto quando paramos de acreditar nele, sabe-se lá por que, preferimos esquecê-lo, fingir que isso não existe e que não é sério o bastante pára nós, pessoas ocupadas que precisam ganhar a vida. É por isso que reencantar é parar de morrer aos poucos e recuperar nossa humanidade perdida, custe o que custar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O lado verde da força

A onda verde e todas as suas tendências hoje estão tão em alta quanto tantas outras modas e comportamentos já estiveram, mas talvez, com muita sorte, essa onda verde estacione e fique para a história. Porque ela não é só uma tendência como muitos jornais, revistas e opinólogos insistem em dizer. Ela não é só bonitinha. Ela surge como necessidade, e com a urgência de um par de óculos em tempos míopes. A revista Sustenta! em sua oitava edição mostrou com uma clareza que ainda é rara, a diferença entre enfocar a sustentabilidade como uma vertente de ação dentre tantas outras e enfocar tudo o que existe de forma sustentável: ciência, política, indústria, arte. O que no fim das contas, quer dizer: fazer direito tudo que fizermos daqui pra frente.

Sustentabilidade é uma palavra bonita, mas que se torna séria se olhada através de lentes mais lúcidas, sustentabilidade quer dizer: garantir o sustento, a sobrevivência das espécies como um todo. Incluindo a espécie humana, lembrando mais uma vez o óbvio: somos parte da natureza também, e não uma instância separada e superior como crêem os míopes. Quem olhar ao redor verá que a sobrevivência de todas as espécies anda trêmula e frágil por toda parte. De opção à necessidade, ser sustentável hoje, significa ir contra a própria destruição

O clichê das tragédias urbanas

Existem situações que não cansam de se repetir nas cidades quando, cada vez mais frequentes, irrompem enchentes, casas alagadas e barrancos vindo abaixo com tudo e todos. Seja no asfalto da rua ou na tela da tv, segue-se sempre a mesma indignação fervorosa, que se volta contra o poder público e, sem remédio, faz mais alto o lamento da tragédia, do infortúnio e da fatalidade.

A mídia principalmente, explora muito bem estas duas vertentes dando vazão à voz que reforça a superficialidade e propaga, mais uma vez, o erro da desinformação.

A culpa é de quem? Dos governantes que hoje se acham empossados tentando consertar o que se deve há séculos de estreiteza? Vamos culpar quem, se vivemos em cidades que desde a primeira pedra não atentam para uma ocupação inteligente do espaço? Apinhadas entre avenidas cinzentas, asfalto e lixo, nossas cidades foram construídas para o caos. Se todo o verde que absorve a água da chuva foi ceifado há tempos do ambiente urbano, para onde querem que vá toda essa água?

A culpa é dos rios, represas e córregos estrangulados? Ou será que o comportamento de cheia de um fluxo de água com alagamento de suas margens é algo antinatural? Podemos perguntar a alguns povos da antiguidade, que viviam às margens dos rios, e que com pouca instrumentação e pretensão, sabiam bem mais do que nós.

Se a culpa é dos governantes, vejamos que incrível surpresa temos ao saber que o poder público atua por meio do trabalho e das idéias de cidadãos comuns, engenheiros, arquitetos, agrônomos, economistas...que em sua maioria só agora atentam para uma construção do espaço saudável e inteligente. Então, a culpa é de quem?

Ocupamos todas as encostas dos morros. Falar do problema social que estes morros carregam não resolve o problema. A natureza é sempre natureza, sempre foi e sempre será. Domá-la é uma ilusão tão grande como aquela que fez e ainda faz pouco das advertências dos ambientalistas, que aliás, já avisaram: vai chover, e muito.

De onde vem a tragédia então? Vamos chorar uma tragédia que nós mesmos escolhemos enquanto cidadãos, geração após geração? Enquanto isso a voz do repórter anuncia mais uma fatalidade na cidade transbordante, mais uma vez, lamentando os efeitos, mais uma vez, desconhecendo as causas.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Avatar e a Cultura da Guerra

De que adianta o coro dos bons modos, da cidadania, da ética e da Xuxa, dizendo que é bom ser bonzinho com nossos amiguinhos se vivemos em uma sociedade impregnada por uma cultura de guerra? Guerra? Como assim dirá você? E não só é uma cultura de guerra, como também é uma cultura da agressividade e do domínio.

Vejamos primeiro as crianças, e vamos deixar as meninas de lado nesse momento, cuja característica que principalmente as difere dos meninos na infância e pré adolescência é o encaminhamento para uma feminilidade exaustivamente preenchida pela moda, pela beleza, pela busca de atenção e poder, e obviamente, pela sedução a qualquer preço do macho dominante. Mas vamos deixar as meninas de lado e vamos falar dos meninos, obviamente de modo geral.

A naturalidade com que um menino de 5 anos imita um revólver com a mão e distribui sonoros tiros cinematográficos sobre seus coleguinhas, é a mesma com a que os pais presenteiam seus filhos com toda sorte de artefatos e ícones de guerrra e violência: armas, bonecos armados, tanques de guerra, desenhos animados repletos de pancadaria e lutas, que, quer sejam entre o bem e o mal, aparecem cada vez mais agressivas e cotidianas. Estes mesmos pais fervem de dor de cabeça em uma reunião de colégio quando ficam sabendo que seu anjinho mordera a orelha do coleguinha no recreio.

Por essas e outras, é bem possível que o filme Avatar tenha pego muitos pais de surpresa, que, ao levarem seus filhos para mais um filme de ação cheio de efeitos especiais, acabaram levando de brinde uma lição sobre como a bestialidade glamourosa da guerra, feita de soldados durões e um completo aparato bélico açougueiro, talvez não seja um bom negócio. Não só essa bestialidade, mas bem como a ideologia de progresso e dominação que a sustenta, que é a ideologia do mundo real onde vivem imersos e desacordados pais e filhos. É uma pena que a maioria dos pais não vão sequer se lembrar dessa lição quando levarem seus filhos para tomar a próxima dose de violência gratuita nas telas do cinema.