Foi só um arranhão. Um arranhãozinho, indo do capô à lanterna do carro, coisa pequena. Então tudo bem, ela pagava e ficava tudo certo. Ele perguntou seu nome, mas ela não respondeu.
-Só um minuto, vou anotar a placa do seu carro primeiro.
Ih, aposto que essa deve bater o carro todo mês – ele pensou.
-Porque você tinha que me fechar daquele jeito? Eu achei que você ia parar.
-Porque sempre a gente tem que parar? Os outros nunca param né?
-Eu achei que você ia parar moça.
-É eu também.
-Você tem seguro?
-Não.
-Eu também não. E agora como é que faz? Quem vai pagar?
-Seria bom se você pudesse fazer a gentileza de assumir a culpa - disse ela.
-Mas não fui eu quem bati em você, foi você quem veio correndo, lá de trás, ouvindo rádio, toda desligada, eu vi.
-Voce viu?
-Ví.
-Como se eu estava lá atrás?
-Eu ví ué, olhei pelo retrovisor e vi você, correndo que nem uma louca.
-Então quer dizer que você me viu e nem deu o trabalho de desacelerar... Pelo contrário, correu mais ainda.
-É por que queria chegar primeiro. Estava atrasado. Aliás, estava não, estou. Agora já perdi a hora.
-Eu também.
-Acho melhor agente sair daqui do meio da rua, lá atrás já está virando um caos.
-E você não vai pagar?
-Você tem telefone?
-Pra que?
-Não, sei. Não é isso que as pessoas fazem quando batem o carro, trocam telefones?
-Vamos estacionar ali do lado
-Ok.
...
-Você nunca bateu o carro? - ela perguntou.
-Não, estava novinho, comprei faz pouco tempo.
-Puxa...
-E você, bate o carro, assim... Com frequência?
-Por que? Parece?
-Só estou perguntando...
-Já bati sim...Mas uma vez só, e pior, foi nessa mesma rua...
-Sério?
-Sério.
-Que coincidência...
-Nem me fale...
-Então quer dizer que você bate sempre, quer dizer, vem sempre aqui?
-É o caminho do trabalho.
-É o meu também.
-E todo mundo sempre corre aqui nessa ruazinha, impressionante. Parece que todo mundo passa por aqui e lembra que tá atrasado.
-É isso também acontece comigo.
- Olha... Me desculpa, eu não queria ter feito isso.
-Na verdade, eu que não devia ter corrido tanto, vi você vindo lá de trás, mas queria chegar primeiro...
-Mas era sua vez de passar.
-Mas você estava com mais pressa do que eu...
-Na verdade, eu nem estava com tanta pressa assim, mas todo mundo correndo, dá até mais pressa, não sei...
-É que essas coisas estão...tipo no ar sabe? Um pega e passa pro outro..sem saber
-Você também acredita nessas coisas?
-Acredito...
-Na verdade, eu quase nunca corro, eu nem sei porque estava correndo...
-Vai ver você tinha que bater o carro mesmo e eu também.
-Será? Não sei... As pessoas não acreditam nisso por ai...
- Ah, não sei, às vezes eu acredito...
- E porque você não fez seguro?
-Eu achei que nunca ia bater o carro. Não, não foi isso, eu achei que nunca ia bater o carro a ponto de precisar do seguro. E você, por que não fez seguro?
-Não sei, descuido. Acho melhor fazer daqui pra frente, já é a segunda vez então...
-Eu tenho um primo que é corretor de seguros sabe... Gente boa ele.
-E porque você não fez seu seguro com ele?
-Qual é seu nome?
-Márcia.
-Olha Márcia, eu não gosto de seguradoras, seguros, enfim, essas coisas só me deixam mais aflito ainda.
-Por quê?
-Porque você está literalmente investindo em uma coisa que quer evitar sabe?
-Mas não é bom prevenir?
-É bom sim, você tem razão.
-Acho que você tem que superar isso sabe?
-Você é psicóloga?
-Sou.
-Ah entendi.
-Entendeu o que? É sério, você tem que fazer um seguro mesmo, olha onde você vive. É loucura não ter seguro hoje em dia.
-É mas você também podia ter pensado nisso do seguro....ai quem sabe, evitaríamos alguns problemas...
-É mas eu não tenho.
-Você quer o telefone do meu primo?
-Quem, o do seguro? Ah pode passar... Nossa estou super atrasada, já perdi meu compromisso. Qual é o seu nome mesmo?
-Fábio. E o seu é Márcia.
-Isso.
-Você ia pra onde mesmo?
-Vila Mariana. Eu trabalho lá.
-Perto de onde?
-Da cinemateca, conhece?
-Sei, sei sim. Eu fui lá uma vez já... Ver um filme... Não esqueço esse dia...
-Que filme?
-Não lembro o nome, mas era sobre um casal...
-Um casal...?
-É um casal desses bem comuns sabe, que fica discutindo a relação o filme inteiro... Muito, muito chato mesmo.
-Mas porque você foi ver então, se era tão chato?
-Eu não sei, achei que minha namorada... Ex-namorada! ia gostar de ver o filme, ai fomos lá ver... Nossa era muito chato mesmo, as músicas davam até sono... Eram uns boleros sofridos... Que filme triste sabe... E o casal discutia e discutia e não saia do lugar. Parecia até que eles gostavam de ficar conversando e discutindo sem parar... Uma loucura...
-Você pelo menos prestou atenção na música.
-É que eu sou músico...
-Legal...
-Agente tem uma banda...
-Bacana
-Eu meu primo e uns amigos nossos...
-O primo do seguro?
-Não outro primo... Família grande, italiana...
-Meu pai também é descendente de italiano... Imigrante
-Você, eu e metade da cidade...
-Uma vez eu fui num museu... Museu do Imigrante, lá na Mooca, você conhece?
- Não, nunca ouvi falar.
-É bem legal lá mesmo... Você pode procurar os registros da sua família, sobrenome e tal... Ver quem veio de navio com quem, de onde vinha, pra onde ia...
-Meus bisavós se conheceram num navio... Essa história é engraçada, eles viajaram seis ou sete meses, e no último dia de viagem se conheceram, só no último dia... Mais um pouco eles tinham ficado sem se conhecer...
-Será?
-É, na verdade eu acho que não... É como eu disse, acho que tem coisas que tem que acontecer mesmo, vai entender... Se quiser depois te conto a história melhor, eu não lembro bem... Mas eles foram bem felizes juntos...pelo menos eles se davam bem...
-É um dia você me conta. Vou ficar feliz em saber a história dos seus bisavós...
-Sério?
-É sim... É que tem a ver com o tema da minha pós da psicologia...
-Sobre o que é a sua pós?
-Tem um nome complicado, mas é sobre a função da memória na formação da personalidade...
-Poxa bacana... Coisa séria hein..
-É... Eu queria fazer já faz muito tempo... Esses dias estava pesquisando sobre a nossa capacidade de lembrar das mesmas coisas do passado, de um jeito diferente, e mudar nossa percepção sobre elas no presente... Quase como acionar um botão... Que podemos apertar a qualquer momento...
-Tipo a lembrança dessa batida daqui para frente...?
-É tipo a lembrança dessa batida daqui pra frente...
-Parece então que agente apertou o botão ao mesmo tempo...
-É...Olha, eu nem sei por que impliquei tanto com esse arranhãozinho.
-Um arranhãozinho com um leve amassado no final...
-E um pedacinho do para-choque caído.
-Não é tão ruim assim.
-Não, não é.
-E agora eu vou olhar pro meu carro amassado, e vou lembrar de você.
-Eu acho que ainda vou lembrar da batida também...meu carro arranhou mais que o seu.
-É verdade, você foi mais prejudicada do que eu.
-Pois é, está desigual.
-Então eu vou ser obrigado a te pagar um café para compensar.
-Mas um café não vai compensar esse dano...
-Não tem problema, eu pago vários.
-De uma só vez?
-Não, posso ir parcelando os cafés se você quiser...
-Em quantas vezes?
-Umas quatro ou cinco quem sabe... Depende de quantos cafés você achar que vale essa batida...
-Acho que vale alguns cafés, talvez uma ida à oficina...
-Que bom... Agente compensa o dano.
-É agente compensa... Aos poucos
-É aos poucos.
-Você vai por ali?
-Eu vou para o outro lado.
-A essa hora não faz mais sentido ir por ali, vou voltar pra casa.
Me desculpe, atrapalhei seu dia.
-Que isso. Foi só um desvio de rota. Acontece.
-Mas que besteira, eu nunca devia ter batido em você, devia ter desacelerado.
-Eu também, e devia ter desviado.
-Sim e você também.
-Mas aí teria sido mais um desencontro.
-Sim, teria...
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