quarta-feira, 22 de junho de 2011

Das chuvas

Sempre choveu por aqui. As vezes, a água que caia assumia contornos artísticos, granulada como um filme, espessa como as pinceladas de Monet que encharcavam o nenúfar polido pela tarde. As vezes, ousava com meu guarda chuva vermelho, passear pelas poças, evitando a lama com os sapatos de boutique. Mas aquilo foi nos anos vinte, quando em Paris se conhecia mais a noite do que o dia. Mas eu sempre preferi o dia...e não faz mal assim.

Mas você disse que gostava de chuva, e eu também, e nisso o tempo passou. Eu continuo gostando dela, mas de um jeito diferente...o sentimento que ela me traz, de aconchego protegido de seus respingos, pelo lado de dentro da janela, é outro. Não se parece mais com a melancolia do gramofone, nem com os traços esparços de um tempo que já se foi...é agora algo diferente, como o grito infantil, alumbramento de Bandeira, ela vem da entranha das matas, dos rios, das terras virgens encrustradas de sibilos que quase ninguém ouve. Ela agora, a mim transparece o que há por trás de cada gota costurada à mão, fio a fio, como o crochet dos tempos outros, quando subíamos as ladeiras empedradas de Évora, Cascais, Ribeira e Aviz, à volta do colégio. Na chuva os pequenos não iam às aulas e ficavam a fazer troça de seus mestres. O mundo era menor naquela época, os livros mais extensos e empoeirados. Conhecia-se o vizinho ao lado, e a chuva sempre nos dizia “Pois fiquemos mais um pouco à espreita do dia”.

E saudade já não era tanto quanto se pudesse caber numa vida.

6 comentários:

  1. que bonito, Carolzita! Fechei os olhos e vi a cena, chuvosa e colorida...

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  2. Pois é, Caroline, nesse tempo dava para olhar em volta, sentir o aroma das coisas... Que nos aconteceu entretanto?

    Beijo :)

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  3. Sentir o aroma das coisas....a maioria não sabe o que isso quer dizer...

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  4. Tudo depende de com que "olhos" vemos as coisas... como vivenciamos o nosso dia a dia, daí pequenas coisas podem se transformar em grandes pela sua intensidade. Seus "olhos" enxergam bem....

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  5. Obrigada Omar! Temos todos que voltar a "ver" novamente a realidade, não é mesmo? =)

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