Estava passeando naquela rua por acaso. O dia havia se alongado e entre
um compromisso e outro, pequenos instantes foram guiando os passos de Sara por um
bairro tranquilo, rumo ao desconhecido.
Os pensamentos foram se afrouxando. Ela diminuiu o ritmo e enquanto caminhava
pela calçada ladeada de lojinhas, decidiu “dar-se” aquele dia de
presente.
Pensando melhor, um dia inteiro talvez não pudesse, mas aquelas horas
pelo menos...
Então se deixou levar por uma coisa e outra que avivavam seu
passeio e abriam uma pequena fresta em seu coração. Um bibelô charmoso em uma
vitrine, flores nascidas na calçada, uma costura bem feita em um vestido, o
cello tocando dentro do ambiente de uma gostosa livraria...
E assim foi. Não comprou nada, não queria nada, bastava-lhe a beleza e o
esmero das coisas vistas.
Há muito que andava afogada... Mas aos poucos, as muitas nuvens
caóticas, repletas de
urgências, atropelos, palavras atravessadas, incompreensões e desencontros,
iam ficando
para trás. Até a memória doce (e não sem sentido, a mais dolorosa) de
seu ex-namorado,
principiava sumir e desbotar aos poucos, como água de banho quando
escorre entre os dedos,
ele também, em meio aquele lento passeio, agora ousava liquefazer-se.
A beleza do passeio que quase sustentava seus passos numa leveza avessa
ao cotidiano da cidade, valsando seu vestido pra lá e pra cá, levou-a
sem saber, justamente
ao encontro silencioso daqueles lugares em que queremos estar, mas não
sabemos exatamente como chegar.
Foi quando, sem se anunciar, num vislumbre apressado de uma casinha
branca em uma vila,
essa nuvem, junto às outras de pouco afeto, contraiu-se em um último
átomo restante e
sumiu no paralelepípedo.
Num pedaço de rua, por um triz de segundo, quando quase ia
deixar-se ir mais à frente
sem reparar na casinha branca, seu ser estancou na calçada. Naquele instante foi como se seus olhos, impregnados da visão daquela casinha de
vila, aquietassem-se.
Naquele momento, enquanto um gato gordo e listrado vagarosamente
inspecionava seu território, Sara abriu as mãos sem perceber e deixou cair
delas as últimas memórias gastas
que carregava consigo, com os olhos fixos na casinha.
Ela tinha uma sacada com trepadeiras e muitas folhas secas na entrada.
Parecia estranhamente abandonada, e mesmo assim, conservava algo que chamava
Sara para perto de si - havia alguma vida naquele lugar. Ela caminhou alguns
passos até o portão baixo e antigo da casinha, e olhou para dentro,
esquadrinhando com a visão e os ouvidos qualquer sinal de que a casa fosse
habitada. Mas ao ver uma placa imobiliária caída no chão, bem próxima à porta
de madeira, desconfiou que a casa talvez estivesse à venda. E não estava
errada.
Não demorou muito para que pegasse o celular e ligasse para o número
indicado na placa.
Enquanto o telefone chamava e ninguém atendia sua ligação, podia sentir
a calmaria que
habitava aquele lugar: nenhum som que não viesse dos passarinhos parecia
invadir aquela
ruela. A cidade e tudo mais havia ficado para trás, encapsulados em alguma bolha distante de
saudade e confusão, as buzinas, a poluição e seu ex feito fantasma,
aguardavam todos do lado
de fora, sem se atrever a adentrar a simpática vilinha.
Alguém atendeu ao telefone do outro lado da linha.
-“Alô”
Disse Sara ainda receosa do que deveria dizer... E como quase sempre
fazia, as vezes com
sucesso e outras nem tanto, disse a primeira coisa que lhe veio à
cabeça.
- “Eu só queria dizer que achei o telefone de vocês em uma plaquinha, em
frente a uma casa,
aqui na Rua Madressilva...”
-“A senhora está interessada em um de nossos imóveis?”
Sara não sabia o que dizer, talvez estivesse ha tanto tempo interessada
em tanta coisa. Uma
delas era mudar de rota, contornar o fio de sua vida e leva-lo para
outra direção, mas mudar de
casa? Assim, dessa maneira? Havia tantas contas pra pagar ainda, e não
sabia nem ao certo
se devia mudar de profissão. Sara gostava do trabalho no escritório de
publicidade, mas queria
trabalhar com outra coisa, só não sabia ao certo o que era. Já havia
pensado muitas vezes sobre
isso, mas quando tentava explicar o que sentia ou botar os pensamentos
em ordem, era tomada por um mar de sensações difusas, coloridas, cheias de
cheiros e tecidos. Não sabia por que, mas demorava-se sempre nas lojas de
tecido, observando as texturas, as cores e imaginado todas as coisas que
poderia fazer com meio metro de pano colorido, tesoura, agulha, linha e...outro
tipo de vida. Uma que não era aquela, uma na qual pudesse ficar um pouco mais
em silêncio consigo mesma, e dar outro contorno aos próprios modos, hábitos,
gostos...a própria mente talvez.
Uma vida que não a fizesse ver tudo com os olhos de quem precisa sempre
vender algo a
alguém. Cá com ela mesma, parece que havia deixado de ser publicitária
há muito tempo, só
não sabia quanto ainda demoraria para contar a verdade a ela mesma e aos
outros.
Principalmente ao seu chefe, que tinha tirado seu sono na noite anterior
por causa de um
anúncio de chiclete. Se ela não gostava de chiclete, como iria convencer
os outros de que
aquele chiclete horroroso era “uma explosão de sabores exóticos e envolventes
como você
nunca experimentou”?
No mundo de Sara e de seu chefe tudo tinha que ser envolvente: do
sorvete ao papel higiênico, tudo era “imprescindivelmente envolvente”, mas Sara
estava cansada das coisas
imprescindíveis e envolventes. Poderia se viver sem elas? (talvez não
sem o sorvete!) Mas
aquela oferta sensória e infinita das coisas compráveis e que ninguém
poderia viver
sem, das ofertas imperdíveis, dos lugares inevitáveis, das últimas
promoções, tudo se misturava e esgotava algo de vital em Sara, que nem
mesmo ela sabia ao certo o que era. O gato gordo deu um bocejo
concordando, ele também estava cansado de tudo aquilo.
Sara sentiu os pés pisando firme o paralelepípedo. Destino são fios, é
costura, isso era tão
claro... E se é verdade que a toda costura se precede um alinhavo, podia senti-lo agora debaixo dos próprios
pés no paralelepípedo; atrás de si nas trepadeiras preguiçosas que
descortinavam parte da casinha; no gato que agora dormia, inebriado pelo lusco
fusco dos pensamentos de Sara (minúsculos foguetes elétricos explodindo em
série por cima de sua cabeça). Puxou o fio, arrematou e cortou a linha.
-“Sim estou.”
Imagem livre - www.morguefile.com
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Caroline,
ResponderExcluirGostei dessa ebulição interior em busca de mudança. É preciso ousar, não é assim?
Beijo :)