quarta-feira, 13 de julho de 2011

A Medéia e o vendedor de sorvetes

Hoje percebo como foi interessante “passear” por alguns personagens na época em que fazia teatro. Cada vestimenta, cada universo psicológico, cada personagem era sempre um novo convite ao entendimento (ou desentendimento) da natureza humana. Durante aqueles longos cinco anos de friozinho na barriga, maquiagens no camarim e ensaios intermináveis, dois personagens vividos ficaram na memória. A Medéia e o vendedor de sorvetes. E desses dois, posso dizer logo de cara qual deles foi mais fácil de encarar: a Medéia.

Medéia é uma tragédia grega, clássica, densa e absorvente, daquelas cheia de conflitos, cenas impressionantes, com direito a coro grego e tudo mais. De forma bem rasa, ela é um mergulho dramático no que pode haver de mais mal resolvido em um ser humano.

Mas fazer Medéia não foi difícil. A distância que nos separa fez possível interpretar uma Medéia atemporal, que na montagem da Cia. Paidéia, vestia uma roupa de guerra quase medieval, com manto um de lã por baixo, cheia de retalhos amarrados e uma dura couraça (física e metafórica) por cima de tudo isso.

Aquela Medéia, com a qual fui obrigada a me deparar, desenrolava sua tragédia subindo e descendo por uma escada vertical de ferro no fundo do palco. Se segurando ora pelos pés, ora só pelas mãos, enquanto cantava sua dor da traição e anunciava a morte dos próprios filhos. Sim, Medéia, além de estar vestida em uma armadura quente, sob uma espessa cobertura de maquiagem branca, que lhe fazia mais parecer um guerreiro mongol greco-medieval, era uma personagem assassina.

E não foi tão difícil fazê-la. Toda aquela densidade, todas as minucias de um personagem terrível e contraditório, eram possíveis de serem aprendidas e interpretadas. Não tão foi difícil dramatizar, colorir com nuances emocionais, trabalhar, enfeitar o personagem, reconstruir de forma inverídica tantas dores e enganos.

Lógico, não vou mentir que deu um pouco de trabalho, e que no começo não foi nem um pouco tranquilo falar meu texto dentro de um figurino que era quase uma armadura, de ponta cabeça em uma escada, suando embaixo de tanta maquiagem e ainda por cima, dizendo que iria matar os próprios filhos com um bocado de convicção. (Sim, houve momentos em que eu me perguntava o que estava fazendo ali!) Mas foi uma experiência, um desafio, uma vivência importante. Fazer Medéia, depois de algum tempo, me ensinou a comunicar o indizível, em qualquer situação.

Difícil mesmo foi fazer o personagem que viria alguns anos depois: um vendedor de sorvetes. Esse foi, senão o maior, o mais difícil desafio durante todos aqueles anos teatrais.

Sim, um vendedor de sorvetes, que abria a peça entrando em um ônibus com sua geladeira de isopor a tiracolo. E quem disse que eu consegui de primeira? Ou de segunda, ou de terceira? Nada disso. O personagem era simples, natural. Não era abrilhantado por nenhum feito fantástico, não fazia acrobacias em escadas, não resistiu a séculos de história e poeira: pegava ônibus, como eu pegava, e era claro, direto, transparente e espontâneo, sem nenhum artifício. Fazer o vendedor de sorvetes foi para mim a verdadeira tragédia grega.

Para piorar a situação, o tal vendedor era o próprio narrador da peça, que entre um picolé de milho verde e outro, contava (ou deveria contar) a história para sua plateia, com a maciez e a simpatia do trato fácil e amistoso que todos os bons vendedores de ônibus têm.

O vendedor de sorvetes era real, palpável e verdadeiro, poderia se encontrar um em qualquer esquina, desbancando os trejeitos de uma interpretação falseada. (Você não costuma ver Medéias caminhando por aí na rua, costuma?) Como era difícil ser simples.

E como toda catarse teatral há de fazer nos atores, o vendedor de sorvetes, inevitavelmente mudou minha vida, e me fez refletir. Ví como nos tempos de hoje, em muitas esferas da vida social (política, televisão, relações humanas), é fácil ser complicado. Pior ainda, como é fácil usar a complicação e a complexidade para envolver as pessoas.

Hoje, tristemente, se tornou fácil enfeitar e falsear a realidade, emaranhando os outros em meandros engenhosamente construídos, em discursos impressionantes e tortuosos. É fácil fazer cena, tornar as coisas sensacionais, envolvendo e prendendo atenção das pessoas através do espanto, da complexidade e do horroroso. Tornou-se fácil fazer do espetaculoso, e de tudo que choca e impressiona, sinônimo de importância.

É fácil ser e entender Medéia na sociedade atual, pois nos acostumamos com ela. Assim como é fácil ter nossa atenção roubada pelas Medéias da vida cotidiana- vide qualquer novela.

Nenhum personagem principal da maioria dos produtos culturais hoje, parece ser digno desse lugar sem uma boa dose de problemas inacreditavelmente insolúveis, maus bocados e infortúnios. Como diz um amigo, muito da arte aplaudida está virando sinônimo de narrativas neo-sensacionalistas, cheias de negativismo, dos emaranhados da dor, do engano e da perda da condição humana, nas quais o interesse é suscitado pela complexidade de traços horripilantes, em espectadores mortificados, ávidos somente pelo choque sináptico do espanto. A nova arena greco-romana.

E assim como é fácil representar Medéia, é fácil moldar filosofias e teorias intelectuais complexas, cheias de escombros, abstrações e palavrórios rebuscados. Intelectualizar, manipular, racionalizar, construir sentidos, explicar demais, dramatizar, complicar ainda mais nossas complicações. Hoje, é fácil ser difícil, pois para muitos, isso é sinônimo de atenção, respeito, erudição e poder.

Em nossos dias não seria nem um pouco fácil fazer a Medéia vender sorvetes na praia, ela é muito complicada para isso. Talvez pudesse fundar um partido, causar um rebuliço no shopping, fazer uma revolução, mas não, vender sorvetes, definitivamente não. Não faz seu tipo.

Hoje, difícil mesmo é o silêncio. É trabalhar nos bastidores, com ou sem reconhecimento. Difícil é ter poucas e valiosas palavras para dar. A naturalidade do olhar verdadeiro, deixar o afeto amigo exposto, sem medo. Mostrar a imagem de nós mesmos atrás das couraças, não falsear, não querer agradar. Ser espontâneo e natural, enquanto o mundo pede que caminhemos na outra direção. Falar o que sentir, ser simples e viver com simplicidade e tranquilidade, mesmo que pareça desinteressante, inadequado, estranho. Mesmo que não dê votos, não traga audiência, não impressione o chefe. Ter coragem de ser diferente em um mar de personagens teatrais e maquiagens d’alma.

Explicar menos, vivenciar mais, intuir as sutilidades e singelezas, perceber o outro. Diminuir o ritmo e o domínio da mal domada máquina de pensar e produzir juízos em série que é o pensamento. Se livrar do supérfluo, das artificialidades, compreender a sabedoria das experiências da vida... Reconhecer a maestria natural que exala das coisas verdadeiras, feitas com o coração. Vender sorvetes dentro do ônibus.

Difícil é recuperar a simplicidade perdida.

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